Casos de racismo mais que dobram em instituições de ensino em MG
Ocorrências em Juiz de Fora e no Estado abrem discussão sobre modos de entendimento e enfrentamento da violência racial
Os registros de crimes de injúria racial em ambientes educacionais entre os meses de janeiro e julho deste ano (51) já superam o total contabilizado em todo o ano passado no estado (48), conforme dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Na comparação dos primeiros sete meses deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior, é possível perceber uma triste realidade: a prática do racismo mais que dobrou nas instituições de ensino mineiras. De janeiro a julho de 2022, foram formalizados 25 casos, menos da metade do verificado no mesmo período deste ano.
Em Juiz de Fora, os dados da Sejusp apontam que em todo 2022 houve um registro de injúria racial em espaços de ensino e, em 2023, no intervalo que compreende janeiro a julho, apenas um caso foi contabilizado. Segundo o advogado e atual presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB JF, Geovane Lopes de Oliveira, a subnotificação está presente em casos como esses, existindo algumas explicações possíveis para os números inexpressivos. “Esse dado não indica que estamos convivendo com uma sociedade menos racista, mas sim que, às vezes, a própria vítima ou não consegue compreender o ato que sofreu como racista ou, mesmo compreendendo, opta por não denunciar, já que ela se sente desamparada por sentimentos de que não vai dar em nada, ou de que vai sofrer retaliação ainda maior que o próprio ato, considerando também que as instituições são permeadas pelo racismo. Embora haja muitos relatos na sociedade, eles não chegam às instâncias que registram os dados oficiais, e essas estatísticas não refletem a realidade.”
Identificar que está sendo vítima de injúria racial ainda é uma dificuldade, muito por conta do chamado “racismo recreativo”. Como explica o advogado, trata-se de um processo histórico de diminuição e desqualificação do que é racismo, especialmente se ele vem na forma de piada ou comentários jocosos. “Por exemplo, quando uma pessoa negra é chamada de uma palavra ofensiva ou recebe comentários ligados a sua condição racial, muito frequentemente é dito que aquilo foi só uma brincadeira ou que não se tinha a intenção e, assim, muitos atos de injúria passam batidos porque são tratados socialmente como admissíveis.”
Quatro em cada dez vítimas sofreram discriminação na escola
Em julho deste ano, o Instituto de Referência Negra Peregum e o Projeto SETA (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista) lançaram a pesquisa “Percepções Sobre o Racismo”, que concluiu que os espaços de ensino estão no topo da lista de locais em que brasileiros mais afirmam ter sofrido violência racial. A cada dez pessoas que relataram ter vivenciado racismo no país, 3,8 sentiram a discriminação em contextos escolares.
A mãe de um menino de 12 anos, estudante de uma escola particular de Juiz de Fora, cujas identidades serão preservadas, contou à Tribuna que, novato na instituição, seu filho passou por dois episódios de racismo. “A primeira vez ocorreu no início do ano, quando uma criança fez uma “brincadeira” relacionando ele a um animal. Mais recentemente, em setembro, ocorreu de novo com outra criança, que já vinha o espezinhando. Essa criança se dirigiu a ele, fazendo uma “piada” racista sobre a irmã dele, minha outra filha de 8 anos”, relata.
De acordo com a mãe, a escola foi aberta ao tentar dialogar com todas as partes, além de ter se disponibilizado a ser testemunha no caso de abertura de um boletim de ocorrência, uma vez que, segundo ela, a criança havia admitido o feito. “A questão é que faltou empatia por parte dos pais das duas crianças. Eles acabam sempre dizendo que esse não é o perfil da família deles, que têm amigos negros, a mesma conversa se desresponsabilizando”, afirma.
Psicóloga alerta para necessidade de subverter lógica
Para a psicóloga Késia Rodrigues, ao invés de pensar como as pessoas negras devem proceder em casos de racismo, é preciso subverter a lógica e indagar o que os pais brancos devem fazer quando seus filhos proferirem falas ou atitudes racistas. “Um dos problemas do racismo é que a gente não se pergunta porque a pessoa branca não trabalha para que a violência racista não seja feita. As crianças vão captando como os brancos tratam negros nos seus ambientes e se o problema do racismo é falado ou silenciado entre os pais. Um dos mecanismos do racismo em si é a inação, não se fazer nada com isso ou só fazer alguma coisa quando acontece. Ou seja, é importante sensibilizar também os pais brancos em como ter uma educação antirracista em casa para que a criança também possa exercer na escola”, destaca.
O racismo não se faz presente apenas quando há casos de violência. Como explica a psicóloga, ele está nas sutilezas para além, seja quando não se tem diversidade de pessoas negras na sala de aula ou em posições de diretoria e docência, ou quando não se aplica a Lei 10.639/2003, que tornou obrigatória a inclusão do ensino de história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio.
Na avaliação da mãe que denunciou o racismo sofrido pelo filho, os temas raciais são negligenciados na trajetória educacional. “Meu filho estudou os últimos quatro anos em outra escola particular e tradicional da cidade. Lá a criança negra sempre foi minoria, ele era o único da sala. Também nunca vi eventos para mostrar a cultura negra ou discutir a consciência racial”, enfatiza.
Os efeitos psíquicos do conjunto dessas vivências interferem na subjetividade e nas possibilidades de permanência no espaço educacional. “Dentro da escola percebe-se os impactos do racismo muito cedo, seja na desvalorização da criança negra na infância e seu lugar de inferioridade perante ao outro e, mais adiante, em situações de evasão escolar e dificuldade de conclusão e aprendizagem entre a juventude negra”, afirma Késia.
*Bruna Furtado, estagiária sob supervisão da editora Fabíola Costa