Artes Visuais: rendidos por Clarice

Inspirados pela vida e obra de Clarice Lispector, artistas criam obras inéditas para a exposição “Renda-se como eu me rendi”


Por Cecília Itaborahy, estagiária sob supervisão de Wendell Guiducci

30/06/2021 às 07h00- Atualizada 30/06/2021 às 08h22

Render-se à arte como tentativa de compreender literatura, linguagem e realidade. Clarice Lispector ainda instiga os leitores a desvendá-la. Sua prosa íntima, que diz muito sobre a condição humana, é inspiração para artistas de diferentes linguagens, com processos criativos que partem do olhar, da leitura, do toque ou do cheiro. Esses sentidos foram o elemento provocador da mostra “Renda-se como eu me rendi _ 100 anos de Clarice”, lançada na semana passada, em formato virtual, pela Pró-Reitoria de Cultura (Procult) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Vinte e oito artistas visuais expõem suas criações.

Em dezembro de 2020, quando se comemorou os cem anos de Clarice Lispector, a Procult lançou um edital convocatório para artistas das regiões de Juiz de Fora e Governador Valadares – áreas abrangidas pela UFJF. A proposta da exposição era desenvolver obras visuais exclusivas para a mostra, com base em fragmentos da literatura clariceana, escolhidos pelos próprios artistas. O resultado foi diferentes visões sobre aspectos que, em cada um, chocam com sua própria liberdade criativa, e, como um ciclo, vão criando outras significações que extrapolam o sentido inicial. São fotografias, pinturas, colagens digitais, desenhos, escultura, mosaico, cerâmica, bordado.

As obras dos artistas estão montadas na galeria Espaço Reitoria, no Campus da UFJF. Entretanto, por causa da pandemia, a visitação não é permitida. Para preencher essa lacuna, a Procult vai desenvolver, ao longo da mostra, uma série de vídeos que passeiam entre o espaço e apresentam a mostra, de forma remota. O primeiro vídeo foi divulgado na semana passada.

Encontro entre Clarice e os artistas

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“A grande desilusão de tudo o mais”, de Thiago Berzoini

Clarice Lispector possui obra densa e extensa, que permite ressignificar os sentidos que a literatura propõe. Por esse motivo, os artistas encontraram diferentes caminhos para, eles próprios, recontarem o que a escritora imortalizou. Um saco de lixo com um quadro negro escrito “Bem-vindo de volta, meu amor”, por exemplo, foi o ensejo que Thiago Berzoini encontrou para ilustrar uma passagem do livro “A Legião Estrangeira”. Na verdade, quando ele viu essa armação na rua, logo fez ligação com o livro “Amor é tudo que nós dissemos que não era”, de Charles Bukowski. Mas, quando viu o edital, foi em busca de algum trecho da escritora que também fizesse sentido.

Quando leu sobre a definição que ela propõe para o amor, parecia que a imagem tinha sido feita para o trecho mesmo, principalmente por abordar, além disso, a efemeridade das coisas. “No trecho que escolhi, Clarice diz que “amor é finalmente a pobreza” e pobreza é ausência, é miséria, e também ‘querer ter’. O resultado da obra traz, pra mim, sempre a dúvida do que está por trás dessa história que capturei na foto (essa placa parecia uma comemoração pelo retorno desse ‘amor’, mas seja lá o que houve, foi descartada sem nem mesmo apagar o que foi escrito) e também tem a carga de ironia, dessas ‘boas-vindas’ estarem no lixo e o observador ser ‘agraciado’ com essa mensagem numa pilha de sacos de lixo, no meio-fio da calçada”, explica. A obra que ele expôs se chama “A grande desilusão de tudo o mais”, e é uma fotografia manipulada digitalmente.

A também fotógrafa Aline Barbosa começou seu processo criativo relendo a obra de Clarice, que sempre a envolveu. Ela, por fim, selecionou três trechos que faziam sentido para ela naquele momento, com temas que envolviam, também, a pandemia. A primeira, “Folhas doentes e mortas”, surgiu depois que uma de suas plantas adoeceu. Ela teve o “estalo” de fotografá-la e fazer alusão às vítimas da Covid-19 e a um trecho de “Uma aprendizagem ou Livro dos Prazeres”, que estivesse, de acordo com ela, “dentro de um contexto que Clarice escreveu mas não viveu, mas está aqui, como se pudesse dizer algo que nos traduza e dê algum sentido ou sentido nenhum para tanta dor”. A intitulada “Máscaras”, foi feita com base no “Felicidade clandestina”, em que Clarice fala delas como se fossem o próprio rosto humano. Nesse caso, Aline faz uso das que agora são tão comuns na pandemia, que nos protegem, ao invés de esconder.

Por fim, a “Felicidade clandestina entre as pedras do meu castelo”, ela explica que é “uma foto onde escondo ‘Felicidade clandestina’ entre o maior tesouro que tenho das minhas andanças, minha coleção de pedrinhas. Depois de um ano e tanto em casa, a representatividade da minha coleção de pedras é minha coleção de lugares onde pude ser feliz antes do confinamento”. Para Aline, essa exposição é como um amor correspondido, pela própria Clarice.

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"Felicidade clandestina entre as pedras do meu castelo", de Aline Barbosa

‘Como é que se escreve?’

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“Me dê a mão” foi feito a partir de lixo têxtil, por Chintia Pucci (Foto: Divulgação)

Arremessada ora para luz, ora para escuridão quando lê Clarice Lispector, Chintia Pucci desenvolveu um bordado livre sobre lixo têxtil com o nome de “Me dê a mão!”, que representasse o aspecto de se procurar e avançar, que Clarice apresenta em “A paixão segundo G.H.”. Ela fala que, para a mostra, teve que superar uma “imensa insegurança em reivindicar um lugar”. “‘Então, avancei!'”, como a escritora coloca, mas destacando sua condição de “ser” e “estar” naquele momento de concepção.

Julia Vitral, por sua vez, desenvolveu placas de cerâmica que conversam com um “não-saber” que guia Clarice em sua escrita, quando ela se pergunta: “como é que se escreve?”. Júlia, além disso, encontra similaridade entre a leitura dos textos da escritora e sua arte com a cerâmica, como se as duas precisassem de pausas, silêncios e aprofundamentos. “Nas placas de cerâmica que criei, o que está impresso não são mais as palavras da escritora, são apenas traços. Traçados de palavras que acolhi e que construo em um prazeroso aprendizado com a largueza do indizível que apenas bordeja a liberdade do ‘coração selvagem’ de Clarice Lispector.”

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Julia Vitral se inspirou no “coração selvagem” de Clarice Lispector para desenvolver sua obra em cerâmica (Foto: Divulgação)

Por vezes, também, nesse aprofundamento na obra de uma escritora como Clarice Lispector, parece que é o trecho quem escolhe a arte. Com Tarsila Palmieri, que se classifica como artista plástica multimeios, aconteceu assim. Ela desenvolveu um móbile com base no livro “A paixão segundo G.H.”. “De forma geral, Clarice fala sobre processos humanos, sobre assuntos existenciais de forma poética e particular. Quando eu li o livro, automaticamente me veio um tripé, e eu pensei no móbile, que tem movimento, mas se equilibra.” Ela conta, também, que todos os outros aspectos de sua arte foram pensados de maneira assertiva, mas o mais interessante é que o público desvenda esses mistérios, como ela fez com Clarice.

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Tarsila Palmieri desenvolveu um tripé, que representa movimento e, ao mesmo tempo, equilíbrio (Foto: Divulgação)

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