Borat volta aos Estados Unidos em novo filme
Lançado diretamente na plataforma de streaming Prime Video, longa expõe os EUA da Era Trump e fake news
Quando foi lançado, em 2006, “Borat: O segundo melhor repórter do Glorioso País Cazaquistão viaja à América” tornou-se um sucesso inesperado: faturou mais de US$ 250 milhões e ainda foi indicado ao Oscar de melhor roteiro adaptado. O personagem criado pelo ator britânico Sacha Baron Cohen virou um ícone pop graças ao falso documentário, em que o “jornalista” antissemita (lembrando que Cohen é judeu praticante), misógino e racista é enviado aos Estados Unidos para aprender a cultura e costumes do povo americano. Entre momentos de humor absurdo/negro e/ou escatologia, o cazaque bigodudo expõe preconceitos variados da sociedade americana, pois as pessoas (reais) entrevistadas por Borat ou com quem ele interagiu realmente acreditavam que ele era um inocente jornalista estrangeiro.
Fruto de uma década e época que parecem tão distantes, ninguém esperava mais que “Borat” ganhasse uma continuação. Afinal, a fama torna quase impossível repetir o modus operandi do longa de 2006, pois a caracterização do personagem dificulta encontrar algum cidadão desprevenido, e a história do cinema já mostrou que certas piadas não podem ser repetidas – basta lembrar de “Se beber, não case”. Mesmo assim, “Fita de cinema seguinte de Borat” estreou semana passada na plataforma de streaming Prime Video e provou que – pelo menos dessa vez – era possível repetir a piada.
De volta à América
A história se passa 14 anos após o primeiro filme. Acusado de envergonhar o Cazaquistão perante o mundo, Borat Sagdiyev (Cohen) cumpre pena em um gulag quando recebe a chance de redenção. Ele é convocado pelo Governo do país para voltar aos Estados Unidos, que depois de terem sido “arruinados por um homem mau que ia contra os valores americanos” (o ex-presidente Barack Obama) foi salvo por um “novo líder”, Donald Trump. O problema é que Trump não tem o líder do Cazaquistão como um de seus amigos do “Clube de Tiranos”, que inclui figuras como Jair Bolsonaro – retratado nos minutos iniciais do filme -, Kim Jong-Un, Vladimir Putin e o rapper Kanye West.
Como não seria possível se aproximar de Trump, a missão de Borat é entregar para o vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, um chimpanzé, que é também o maior nome da TV cazaque – e também ministro da Cultura. Mas tudo dá errado, e ele decide entregar sua filha, Tutar (a ótima Maria Bakalova), no lugar do chimpanzé para o novo “dono”, e assim promover a amizade entre os países.
Sem poder repetir integralmente a fórmula do filme de 2006, “Fita de cinema seguinte de Borat” até brinca com isso, mostrando várias pessoas que reconhecem o personagem nas ruas, e ainda teve o desafio de encarar o início da disseminação da Covid-19 pelo país – ou seja, menos pessoas e eventos para interagir. Por causa disso, o longa gasta boa parte dos seus 96 minutos como um filme “normal”, mostrando a relação entre pai e filha, que substitui o “venerável produtor” Azamat Bagatov (Ken Davitian), da película original, nas situações absurdas em que Borat se mete. Isso cria algumas piadas forçadas, ainda que engraçadas, como na cena em que o jornalista quer que a adolescente passe por uma cirurgia plástica para aumentar os seios antes de ser oferecida ao novo “dono”.
Momentos assim poderiam fazer da continuação uma espécie de “Todo mundo em pânico” dos falsos documentários, mas Sacha Baron Cohen e o diretor Jason Woliner são espertos. O primeiro “Borat” ajudou a expor, através do humor, alguns dos absurdos da sociedade norte-americana, e a América que o jornalista cazaque encontra em 2020 é bem diferente. Se antes o preconceito ficava mais nas palavras, agora ele é escancarado com orgulho por todos aqueles que tinham vergonha de se expor nos tempos pré-Facebook, Twitter e outras redes sociais, sem contar a disseminação das fake news.
Um país ainda mais absurdo
Estas são algumas das características dos Estados Unidos que a “Fita de cinema seguinte de Borat” aponta de forma inteligente, usando o humor e a escatologia a seu favor. Borat invade eventos republicanos em que Mike Pence segue o discurso de Trump e subestima a pandemia do novo coronavírus; “descobre”, graças ao Facebook, que “o Holocausto nunca existiu” (e que fique claro: O HOLOCAUSTO EXISTIU); acredita que as mulheres são inferiores e devem viver em jaulas; passa alguns dias na casa de dois teóricos da conspiração de extrema-direita; e até participa de um evento de extremistas eleitores de Trump, muitos deles armados ostensivamente com fuzis automáticos, e faz o público repetir uma canção que defende o assassinato de jornalistas, cientistas e do ex-presidente Obama. Até o advogado de Donald Trump, o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, consegue ser enganado e concede uma entrevista para a filha de Borat.
Lançado oportunamente a poucos dias da eleição para a presidência dos Estados Unidos, “Fita de cinema seguinte de Borat” consegue superar o desafio da continuação de uma obra tão peculiar que não precisaria, a princípio, de uma “parte dois”, sem cair na armadilha da mera paródia de si mesma. O segundo filme com o jornalista cazaque tem sensibilidade suficiente para saber que a América mudou – e para pior – em pouco mais de uma década. Os Estados Unidos podem ser o país que defende a vida, a liberdade e a justiça, com uma grande parcela de sua população que pratica esses ideais, mas “Fita de cinema seguinte de Borat” se concentra na minoria que despreza e odeia o que é diferente – e realiza muito bem sua missão. Borat pode voltar para o Cazaquistão com a sensação de missão cumprida.