Livro ‘Xamãs elétricos na festa do sol’, de Mónica Ojeda, é romance polifônico em busca de identidade

Obra de autora equatoriana publicada pela Autêntica Contemporânea apresenta viagem mística em torno de vulcão


Por Elisabetta Mazocoli

29/07/2025 às 07h00

xamas eletricos
(Foto: Reprodução)

O livro “Xamãs elétricos na festa do sol”, da escritora equatoriana Mónica Ojeda, chegou às livrarias em maio deste ano, com edição da Autêntica Contemporânea. A obra, já pelo título, chama a atenção: o ar místico e as combinações inusitadas de palavras acompanham todo o romance, que é polifônico e centrado na trajetória de jovens que comparecem a um festival. A história é situada no ano 5540 do calendário andino, e parte da perspectiva dos indivíduos que se encaminham para um dos vulcões dos Andes para uma festa que reúne músicos, dançarinos, poetas e xamãs, sabendo que, ali, há também muitos que nunca voltam e que são totalmente transformados pela experiência. Além dessa perspectiva, há também o pai de uma das jovens, que a abandonou na infância e vive há anos em uma floresta próxima do local — e ainda os cantos que vão tomando força na narrativa e passam a ser incorporados à narrativa. Toda a obra parte dessa busca mística por algo palpável e real, que é a própria identidade.

O romance começa com a perspectiva de personagens como Nicole, Mario e Pamela. Eles são alguns dos que decidem deixar pra trás a repressão das cidades e os conflitos familiares para viverem a experiência extrema da festa do sol. Nicole, por exemplo, é convencida a ir pela melhor amiga, chamada de Noa, que é uma personagem que vemos através da perspectiva dos outros — e vamos percebendo, assim, o quanto a personagem vai sendo impactada por essa experiência, e como as tradições andinas parecem estar ligadas aos próprios questionamentos dela. Já Mario parece mais perdido quanto ao que toda a experiência pode fazer com sua vida; enquanto Pamela, por sua vez, descobre uma gravidez e passa a conversar sozinha com o feto, que planeja abortar. 

Todos estão lá por motivos mais ou menos claros, e passam a ser rondados também pela presença dos Desaparecidos – que a princípio são indivíduos como eles, mas que subiram a montanha e nunca mais voltaram pra casa. Dizem que eles voltam para as festas e tentam atrair mais pessoas para abandonarem suas vidas de novo. Aos poucos, os leitores também são convidados a entender, a partir dessa polifonia de experiências e das barreiras entre o dito e o não dito, exatamente como os Desaparecidos fazem isso e se há uma divisão mesmo tão clara entre os que estão lá apenas para a festa ou os que ficam para sempre.

Toda essa narrativa é permeada por outra questão, também latente: Noa planeja reencontrar o pai, que a abandonou na infância, e entender o que aconteceu com ele. Esse homem, por sua vez, aceita recebê-la, mas quando sua perspectiva toma força no livro, entendemos que ele nunca se arrependeu de ter deixado a filha e que fez isso por uma necessidade forte. Além disso, a presença quase fantasmagórica da avó de Noa sinaliza uma relação ancestral que pode surgir ali, à revelia do que os demais personagens conseguem controlar.

Uma música que guia

Um ponto interessante para os leitores é que a narrativa também conta com um glossário, ao final, que ajuda a entender melhor certas palavras e tradições andinas que aparecem ao longo do livro. Apesar das múltiplas vozes, que conseguem se diferenciar bem desde a marca textual que deixam na página, mas também por aqueles a quem se dirigem, por seus objetivos ou suas observações em relação aos outros, o livro sempre caminha para o mesmo destino: o vulcão.

Esse misto de narrativas e de perspectivas pode fazer com que o livro pareça confuso, mas longe disso. É como rondar uma festa e conseguir incorporar um pouco do que cada indivíduo está pensando e sentindo, mas tendo em vista uma presença que já dita o tom e o sentido daquela experiência. Por isso, apesar dos muitos caminhos que são apresentados ao longo do livro, há um só som que guia as palavras de Ojeda, e esse som é o das cantoras da festa do sol, que fazem uma música cheia de vida.

Liberdade estética

monica
(Foto: Divulgação)

A liberdade estética de Mónica Ojeda já tinha aparecido antes, na obra de contos com perspectiva feminina “Voladoras” e no romance premiado “Mandíbula”, ambos também publicados pela Autêntica.  Essas duas obras já apresentavam a destreza da autora em incorporar elementos fantásticos com naturalidade e trazer os mitos andinos para dentro das narrativas mais contemporâneas, além das personagens femininas que fogem bastante do óbvio e que têm relações muito bem trabalhadas. 

Mas é com o trabalho de linguagem e de perspectiva que, dessa vez, em “Xamãs elétricos na festa do sol”, ela atinge uma radicalidade na proposta que faz com que a viagem seja ainda mais alucinante. A sensação de quem lê a obra, ao final da leitura, é de também ter escutado as canções que guiam o livro, sentindo o frio da montanha ou a atmosfera de encantamento e medo que ronda os personagens.

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