Curadores do Festival de Cinema de Tiradentes debatem processos de seleção dos longas e curtas que integram a programação
Cento e oito filmes de um universo de milhares de inscritos. Quando se trata de arte em geral, e da sétima especificamente, a seleção das obras que integrarão um festival é um processo peculiar a cada curadoria. Obviamente, as subjetividades de quem participa do processo estão presentes nas escolhas, o que, entretanto, não as reduz a uma questão de “gosto” ou preferência dos selecionadores.
“A seleção final não é absoluta em termos de ‘os melhores filmes’ entre os inscritos. A curadoria é um trabalho difícil, mas jamais um cânone do que é ‘melhor’ ou ‘pior’. Levamos em consideração que mostra queremos realizar naquele ano, com quais filmes queremos fazê-la e que tipo de reação buscamos provocar”, explica o curador de longas-metragens da Mostra de Cinema de Tiradentes, Cleber Eduardo, em bate-papo com o público e a equipe de curadoria realizado na última quarta (25), durante o evento.
Segundo Cleber, um dos critérios que facilita e dificulta a seleção de filmes ao mesmo tempo é a divisão do festival em pequenas submostras, que possuem especificidades próprias. Nos longas, estas categorias são as mostras Aurora, Homenagem, Olhos Livres, Horizonte, Praça, Sessão- Debate, Cinema em Reação, Bendita e Mostrinha. “Durante o processo de seleção, alguns filmes chegam a transitar em mais de uma categoria, mas não raramente eles acabam não entrando para a seleção final “, afirma o curador.
Dissonâncias, debates e decisões
As exibições dos curtas também são divididas em subcategorias, nas mostras Foco, Praça, Panorama, Cena Mineira, Cena Regional, Formação, Mostrinha e Mostra Jovem. Os filmes são selecionados por uma tríade de curadores: Francis Vogner dos Reis, Pedro Maciel e Lila Foster.
Para Francis Vogner dos Reis, que integra equipe, o trabalho é, ao mesmo tempo, exaustivo e estimulante. “Precisamos administrar as diferenças entre nós mesmos. Tem filmes que um só ama e os outros odeiam e vice-versa. Mas a curadoria transcende isto. A seleção deve atender aos critérios de programação das mostras, os curtas devem dialogar entre si. E durante o processo, várias possibilidades de programação são desenhadas. Quando começamos a discutir, não tem como saber o que a mostra vai ser. Somos quatro cabeças, 750 filmes (neste ano) e a tentativa de chegar a um cronograma final”, pontua.
Segundo Pedro Maciel, durante dois anos, houve a mostra “Dissonâncias”, em que entravam os curtas que destoavam das temáticas das outras categorias e/ou não eram unanimidade entre os curadores. “Eu gostava muito, porque era uma maneira de dar uma certa transparência à curadoria, mostrar que divergimos, que cada um tem suas preferências particulares, mas que isto não é o que orienta todo o resto da curadoria da mostra.”
Tecnologia em função da curadoria
Para Pedro, a evolução da tecnologia facilitou e transformou o desenrolar da curadoria. “Quando recebíamos o material em mídia física, tínhamos literalmente que trocar os filmes: a gente se encontrava e passava um para o outro. Hoje, recebemos tudo em links, o que não só facilita a distribuição, mas afeta a curadoria em si, porque podemos consultar os filmes novamente, reassistir algum trecho se quisermos, por exemplo.”
Cleber Eduardo acrescenta que a evolução tecnológica teve um papel tão fundamental que a Mostra Aurora, que exibe longas inéditos de diretores com até três filmes, foi criada a partir da aposta de que o formato digital seria a principal forma de se fazer cinema na contemporaneidade. “Quando esta mostra foi criada em 2008, o digital estava apenas começando. Mas fizemos esta aposta histórica de que ele seria fundamental para novos realizadores cinematográficos que trabalham sem o apoio de um edital. E isto aconteceu. E influenciou no que a Aurora se tornou, porque permite que a gente exiba filmes que em outros tempos nem seriam feitos, filmes de R$ 10 mil, TCCs de faculdade”, aponta o curador.
Veto, classificação indicativa e provocações
E os filmes que não “passam”, e ficam de fora da mostra? Existe algum tipo de veto específico? Seja temático, estético, político, de forma? Segundo Pedro Maciel, o que acontece é que muitas produções nem são enviadas ao festival, devido à identidade que o evento veio consolidando ao longo dos anos. “Tentamos manter o olhar o mais livre possível para que a programação não fique ‘viciada’. Mas filme de doutrinação religiosa ou sobre o Olavo de Carvalho nem se inscreve (risos). Historicamente, temos mais acesso a filmes de orientação política de esquerda, e isto foi moldando o perfil do festival e orientando os inscritos.”
Para Lila Foster, é imprescindível pensar na contextualização das produções e nas discussões pretendidas com sua exibição. “Tivemos inscrito um filme que era violentíssimo, tratava de opressão masculina, abordava a cultura do estupro e tinha cenas fortíssimas. Não dava para exibir sem que houvesse uma discussão, um debate sobre o filme, até por uma questão de responsabilidade. Como não conseguimos encaixar o curta em uma programação em que ele fosse discutido, ele não entrou. Mas não foi um veto às cenas ou à temática em si”, explica a curadora.
Segundo Cleber Eduardo, muitas vezes a classificação indicativa do filme pode cercear suas modalidades de exibição. Quando a produção já tem uma indicação de idade pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), a Mostra de Tiradentes não pode, legalmente, alterá-la. “Isto afeta muitas coisas. Neste ano, por exemplo, queríamos exibir ‘Precisamos falar de assédio’ (Sessão-Debate) e ‘Entre os homens de bem’ (Sessão Horizonte) na Mostra Praça, mas a classificação indicativa não permitiu e tivemos que realocá-los. Mas seriam filmes que causariam uma provocação muito interessante exibidos na praça, pelo momento em que estamos vivendo.”
Para Pedro Maciel, muitas vezes a indicação de faixa etária da Ancine acaba sendo, como nos casos mencionados por Cleber, irônica em relação à sua temática. “Não pudemos exibir estes dois documentários na praça, mas, nos dois casos, as cenas são exibidas livremente. Você vê na TV aberta ou no Youtube o Ratinho chutando a assistente de palco, por exemplo. E os deputados fazem discursos homofóbicos e machistas em horário nobre, no ‘Jornal Nacional’, ou na TV Senado. É mais chocante isso estar tão disponível do que ser exibido numa mostra ao ar livre.”
*A repórter viajou a convite da Universo Produção, que realiza a Mostra de Cinema de Tiradentes