Festejos de Cosme e Damião resistem à pandemia e mantêm tradição
Juiz-foranos adaptam costume para celebrar os santos e transmitir a herança cultural para as novas gerações
Antigamente, era comum ver, nessa época do ano, crianças batendo na porta dos vizinhos à procura das mais diversas guloseimas. Apareciam eufóricos, suados de correr e com a alegria transparecendo no olhar. “Tem doce aí?” Do lado de dentro, ansiosa por esse momento, que foi planejado com antecedência e tanto carinho, a dona da casa abria a porta para entregar balas, chocolates e outros doces bem doces, recebendo de volta, nem que seja por poucos minutos, a simplicidade de ser criança. A tradição de distribuir doces no dia de São Cosme e São Damião atravessou o tempo e resistiu. Mesmo com as adversidades da pandemia e a mudança no comportamento social, muitas pessoas decidiram manter vivo o hábito de celebrar os santos no dia 26 de setembro, para o calendário litúrgico da Igreja Católica Romana, e no dia 27, para as religiões de matrizes africanas.
Há 40 anos, a artista e produtora cultural Adryana Ryal, junto de sua família, distribui saquinhos para as crianças da região onde mora, no Bairro São Mateus, Zona Central de Juiz de Fora. Mas, na verdade, sua história com essa data começou muito antes. “Eu nasci no dia 27 de setembro de 1975 e só anos depois fui realmente entender a data, sua importância e representatividade.” Nesse dia, estava marcado para acontecer o casamento de seus pais e seu nascimento era previsto para um mês depois. Ao meio-dia sua mãe casou e, logo em seguida, às 16h, Adryana nasceu. “Então, minha ligação com a data, com Cosme e Damião é muito profunda.”
Anos depois, diante de fotos da sua infância, Adryana se emociona ao recordar os momentos em que celebrou São Cosme e São Damião ao lado de sua família. A crença na força e no poder de cura dos santos foi transmitida de sua avó para a sua mãe e, desde pequena, para ela. “Na minha família nós não temos a tradição de comemorar com festa o aniversário, nós viemos de uma origem muito simples, de costumes diferentes. O dia do aniversário é o dia que minha mãe nos reúne para contar a nossa história, de como nós nascemos, de onde nós viemos. A minha se repete há 47 anos.”
‘A tradição de um povo só acaba quando ele permite’
Preocupada em não deixar essa tradição – que é essencial para a sua história – chegar ao fim, Adryana continuou, durante a pandemia, a preparar os saquinhos e distribuir para as famílias e os amigos mais próximos. No entanto, foi necessário realizar adaptações visando respeitar as medidas restritivas impostas pela Covid-19, como, por exemplo, a diminuição da quantidade de saquinhos oferecidos para não provocar aglomerações e fazer uso de álcool em gel e máscara ao embalar os doces.
Para ela, “a tradição de um povo só acaba quando ele permite”, e as pessoas que acreditam na data são fundamentais para perpetuar essa herança cultural nas próximas gerações. Por isso, sua família se reúne todo dia 27 de setembro para montar os saquinhos com pipoca doce, bala de goma, paçoca, doce de leite e tudo que tem direito. Em alguns anos, a família chegou a fazer mais de 1.500 saquinhos. “Esse ano faremos menos, mas faremos, como sempre!”
Um gesto de carinho
O dia de São Cosme e Damião remete a sabores e lembranças de infância para Nelson Junior Sobreira. Desde pequeno, ele ajudava sua mãe a preparar com todo capricho os saquinhos de balas e doces, mas grande parte da diversão ficava em correr junto com os amigos de porta em porta, buscando, cada vez mais, doces.
“Quando eu era criança a minha mãe distribuía, mas a gente nunca estava satisfeito com os doces da gente, nós queríamos os doces dos vizinhos também. Isso me traz uma memória afetiva da gente correndo com a sacolinha e entrando na fila, mais de uma vez, para pegar os doces dizendo que ainda não tinha pego ou falando que ia pegar para a irmã, sem sequer ter irmã, tudo só para ganhar mais doces”, relembra.
No ano passado, mantendo a tradição de sua mãe, que faleceu há seis anos, ele distribuiu para os amigos apenas 50 saquinhos, por conta da pandemia. Mas, este ano, com o avanço da vacinação, Junior decidiu aumentar o número de doces. Ele é voluntário coordenador do brechó Doutores do Amor e, com a ajuda de seus colegas de trabalho, organizou a entrega dos 300 saquinhos, bolo e refrigerante no dia 27, seguindo todos os protocolos sanitários.
O projeto social Doutores do Amor é responsável por realizar visitas recreativas a pacientes em leitos de clínicas, hospitais e asilos para levar alegria e carinho. Além disso, a organização também costuma entregar balas, bombons e pirulitos, entretanto, como as visitas aos hospitais ainda não estão liberadas, os voluntários resolveram concentrar a distribuição na loja, localizada na Rua Santa Rita 191, no Centro da cidade.
Um dos motivos que impulsionaram o grupo a organizar a ação foi o desejo de preservar a memória de Gilmara Delmonte, a conhecida boneca Miloca, voluntária por cerca de 30 anos no Doutores do Amor e falecida no mês passado. “A Miloca tinha o hábito de distribuir bolos, doces e chocolates nos hospitais e nós queremos manter essa tradição, até mesmo como uma forma de gratidão e homenagem a ela”, afirma Junior.
O legado de Cosme e Damião
A tradição conta que os gêmeos Cosme e Damião viveram no século III, na Ásia Menor. Ambos eram médicos e cuidavam dos doentes sem exigir qualquer pagamento. Eles teriam passado parte de suas vidas realizando curas, deixando um legado de bondade e amor ao próximo. Dessa maneira, os santos foram considerados padroeiros dos médicos e, mais tarde, de outros profissionais da área da saúde.
No Brasil, eles se tornaram padroeiros das crianças. Segundo Júlio César T. Dias, professor da rede pública de ensino de Pernambuco e doutor em Ciências da Religião, a iconografia que os portugueses trouxeram deles, como muito jovens e imberbes, teve influência para associação destes santos com as crianças. Além disso, Júlio levantou outra hipótese em sua tese de doutorado, realizada na Universidade Federal de Juiz de Fora, de que o alto índice de mortalidade infantil que o Brasil passou até décadas relativamente recentes também contribuiu para essa associação, já que as mães invocavam os santos, tidos como curandeiros, em prol de seus filhos.
De acordo com o professor, tanto no catolicismo quanto nas religiões de matriz africana há muitos relatos dos fiéis sobre curas milagrosas, principalmente de crianças. Os devotos fazem promessas aos santos e, quando têm seu pedido respondido, cumprem a promessa distribuindo doces no Dia de São Cosme e Damião às crianças nas ruas ou às crianças conhecidas.
“Muitas vezes, a promessa é de distribuir doces por sete anos, mas passado esse período, o costume de entregar as balas ficou tão arraigado na prática que o fiel continua a fazer a distribuição de bom grado, só pelo bem que faz ver as crianças felizes ao receber as sacolinhas com os doces”, comenta Júlio.
Ele conta que nas religiões afro-brasileiras há vários itãs (histórias sagradas) sobre o Orixá Ibeji, com quem Cosme e Damião foram sincretizados. O itã que mais chama a atenção é de como os Ibeji (que quer dizer gêmeos) desafiaram a morte, que assolava a aldeia. O desafio era dançar. Quem não conseguisse mais dançar de cansaço teria que deixar a aldeia. Enquanto a morte dançava, os irmãos Ibeji, aproveitando de qualquer distração dela, trocavam de lugar, assim conseguiram enganar a morte e ela teve que se afastar da aldeia. “Dessa forma, os Ibeji enganam a morte, o que podemos entender como seu poder para curar, mas também sua jovialidade e alegria capaz de dançar mesmo perante os momentos mais difíceis.”
Festejar São Cosme e São Damião já faz parte da herança cultural brasileira, a data é um símbolo de união, espiritualidade, fé, cura e alegria. E, afinal, “o que realmente importa é trazer um pouco de felicidade para o povo”, como reforça Júlio.