Reza Forte: uma história que une o tradicional ao moderno
Tribuna bate-papo com Pedro Fellet, que conta sobre a criação do Uaicarajé, prato que deu o segundo título consecutivo de melhor bar de Juiz de Fora no Comida di Buteco
“Mas onde era antes? Na Olegário mesmo? Como eu nunca tinha visto?”, algum desavisado pergunta. Explico: era quase uma garagem: aquelas portas de enrolar, de ferro, que, quando abertas, apresentam um novo mundo, espaço para a criatividade inventar o que quiser que exista lá dentro. Quem passava do lado de fora não imaginava que ainda tinha um ambiente lá embaixo, grande o suficiente para transformar um bar em uma boatezinha, ou, como era chamado, inferninho. Mas outras coisas características chamavam ainda mais atenção quando o interior estava à vista: a balança vermelha, daquelas antigas, as bandeirinhas com o preço, as fitinhas de Nosso Senhor do Bonfim na escada, o avental azul. Eles construíram uma identidade. Virou clássico que, mesmo agora em um espaço algumas vezes maior, foi só a estrutura que mudou. Esses detalhes ainda estão no Jardim Glória. O conceito é o mesmo: é Reza Forte. É um boteco, mas não só.
Em 2021, 2 anos depois de subir aquela porta pela primeira vez, uma decisão fez com que as coisas começassem a virar do avesso. Ser novato em um concurso como Comida di Buteco exige coragem. Não se sabe bem como é o funcionamento e de que forma as pessoas vão reagir no período. E lá foi o Reza Forte inventar o mineiroca: um petisco que mistura Pedro Fellet e Hugo Fernandes, a mineiridade e o carioquês. Com tantas incertezas, ser escolhido o melhor bar de Juiz de Fora com esse petisco foi uma surpresa. Depois disso, um espaço daqueles da Olegário passou a não comportar a procura. Espalhou. Foi necessário um novo lugar. Junto com a mudança, pouco tempo depois, veio outra confirmação: melhor bar pelo segundo ano consecutivo pelo mesmo concurso. Dessa vez, foi com o Uaicarajé: prato que, assim como tudo o que diz respeito ao Reza Forte, envolve família, pesquisa, fusão e tradição, mas com o olhar no novo.
A cabeça borbulha. Pedro e Hugo se sentam para discutir o cardápio, que sempre muda. Um lembra que a mãe fazia um bolinho de milho-verde frito a colheradas – método, inclusive, parecido com o modo de fritar um acarajé – enquanto o outro busca lá no fundo uma referência do que já comeu e, pelo formato, lembra, também, do mesmo acarajé. Mas e se rechear com uma costela? Aí, precisa de um molho por cima com ora-pro-nóbis. E precisa também de um gostinho quente da pimenta do molho lambão com quiabo. Ah! e um pouquinho de coentro bem dosado para fazer as pessoas terem vontade de experimentar a iguaria. O Uaicarajé é comida brasileira, é o que propõe a placa do Reza Forte, logo quando se passa pelo bar, é a regionalidade alimentada pela busca de produtores de perto, e é também família. É tudo, menos acarajé – e essa, na verdade, nunca foi a proposta. Porque a cozinha de fusão é assim. O Brasil é assim.
Aquilo que é comum
É fácil entrar no Reza Forte e ser levado a uma memória que talvez nem se lembre que exista. A um Brasil profundo. Interior. Caipira. Os adornos nas paredes poderiam facilmente ter saído da casa da avó de qualquer um. Na verdade, é quase isso, porque a grande maioria saiu da casa dos familiares de Pedro e Hugo. As paredes acabam por contar, também, a parceria desses dois que se completam em um negócio: um é a alma e o outro é o coração do bar. E são as histórias das famílias de cada um deles que ajudaram a construir desde o nome, Reza Forte (que saiu de uma lembrança de um bar que já existiu quando o pai de Hugo era uma criança), ao que é concreto ou sai daquela cozinha (comandada por Pedro, cujo pai também é chef de cozinha). Por isso, o teletransporte a um lugar do passado é sentido de cara, porque é fácil relembrar o que já foi vivido. Mas lá é também espaço para pensar no que se quer construir. Para frente. “Anseio de futuro”: é isso que eles querem.
Cada passo dado lá na Olegário já tem reflexo agora. O Reza Forte era um bar de entretenimento. A comida tinha que ser pensada de maneira que as pessoas pudessem comer enquanto dançavam. A pausa imposta pela pandemia fez olhar para dentro e pensar no que se quer a partir de então. O foco mudou: a maior sensação passou a ser o que sai da cozinha. Foi um processo de aprofundar na culinária brasileira. Circular pelo país. Experimentar para descobrir qual é a identidade do Reza Forte. E isso é um processo contínuo. A cozinha não para. E mesmo fazendo mais de sete mil Uaicarajés durante o concurso, a busca continua.
Da ideia à mesa
Saber de onde vem não se restringe à tradição nas paredes. Pensar na origem do todo é o que faz mais sentido na cozinha também. O Reza Forte prioriza alimentos agroecológicos, de pequenos produtores da região e da reforma agrária. E estar, agora, com uma estrutura melhor permitiu fazer crescer esse desejo e colocá-lo cada vez mais em prática. A coquetelaria já preza pela fruta estacional, vinda, principalmente, desses pequenos produtores. A cozinha, agora, vai ser ainda mais regional. Para eles, o futuro é local.
Existe lugar no boteco para a tradição e para o novo. A verdade é que o boteco é democracia. E o petisco é o que vier à mente. É por isso que o boteco vive: porque ele se transforma. O Reza Forte tem criado novos clássicos e leva, mais uma vez, o nome de Juiz de Fora para o concurso do Comida di Buteco nacional. Sem esquecer do que veio antes e possibilitou esse passo.
A conversa na íntegra com Pedro Fellet, que deu origem a esse texto, está disponível também no Youtube da Tribuna de Minas.