‘Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss’ chega às livrarias

Livro da jornalista Daniela Arbex mostra que não só aqueles que saíram com vida de dentro da casa de shows incendiada em Santa Maria, mas familiares, profissionais de saúde e os envolvidos no resgate, são sobreviventes de uma tragédia ainda negligenciada


Por Mauro Morais

19/01/2018 às 08h57- Atualizada 19/01/2018 às 15h18

Daniela Arbex Crédito foto JR Faria Studios
Em trabalho que durou dois anos, jornalista relata encadeada trama de solidariedade que abateu lugar de drama: “Era como se cada pessoa estivesse no lugar certo para cuidar daqueles que foram vítimas da boate”. (Foto: JR FARIA STUDIOS/Divulgação)

Um homem grisalho, com calça jeans e uma camisa verde, observa de braços cruzados quatro caixões numa sala escura. Três féretros estão fechados, o outro, aberto. Dois estão sobre o chão, onde está esticada uma lona preta. O aspecto de desordem é confirmado pelo chão sujo e pela presença de cadeiras e outros incompatíveis objetos. Da revista “Época” ao famoso jornal “The Boston Globe”, resta apenas uma ilustração indefinida de uma tragédia que abalou Santa Maria, o Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo. “Porque ele está sozinho? Onde é isso? Quem está no caixão? Qual era a relação dele?”, perguntou-se Daniela Arbex, que responde às próprias questões num dos mais emocionantes capítulos de “Todo dia a mesma noite – A história não contada da Boate Kiss” (240 páginas, Editora Intrínseca), que chega nesta sexta (19) às livrarias. Num retrato doloroso, a repórter especial da Tribuna e escritora traça a história de coragem e generosidade que envolve Ananias Ávila da Silveira, de 53 anos, personagem da intrigante fotografia que Felipe Dana registrou para a Associated Press e rodou o mundo.

CAPA MesmaNoite 300dpi1Símbolo de uma noite sem fim, Ananias conjuga em sua narrativa a aflição e a solidariedade. Pai de Natália Greff Maicá, 21, uma das sobreviventes do incêndio, o homem, como muitos outros envolvidos na tragédia, foi capaz de estender os braços quando sua única vontade era chorar. “O livro tem 55 mil palavras, e não tem as palavras herói ou superação. Heroísmo é algo sobre-humano, e tudo o que eles fizeram é humano demais. Classifico como pessoas capazes de cuidar de gente e se colocar no lugar do outro. E também não coloquei a palavra superação porque não se supera morte de um filho. O amor é permanente”, comenta Daniela, que há dois anos começou o trabalho sobre o evento que, no próximo dia 27 completa cinco anos.

“Isso tudo aconteceu e o Brasil não mudou. A gente chorou, mas virou a página. Como sempre fazemos em todas as tragédias. A gente sempre chora, manda roupa, água, e no dia seguinte se pergunta: O que tem para hoje?”, critica a jornalista, que, pela primeira vez, retrata um drama geograficamente distante da Juiz de Fora onde nasceu e escreveu mais de duas décadas de carreira. “É tão próximo, não pela temporalidade, mas porque poderia ter acontecido com qualquer um de nós. Impossível se tornar indiferente a essa tragédia”, aponta. “Mexeu muito comigo descobrir que o Brasil não sabe quase nada dessa história. É o mesmo motivo que me fez escrever o ‘Holocausto brasileiro’ e o ‘Cova 312’, a necessidade de construção da memória, seja a memória recente ou a do passado.”

dentro Foto Kiss 2 Crédito Marizilda Cruppe
Caderno com fotografias de Marizilda Cruppe integra livro, mostrando com leveza e poesia, o presente dos sobreviventes e dos familiares (Foto: Marizilda Cruppe/Divulgação)

 

‘Fiquei pesada também’

Pelo viés da dor, Daniela mostra que, tanto os que saíram da boate com vida, quanto familiares, profissionais de saúde e voluntários no socorro às vítimas tornaram-se sobreviventes. Resistiram ao que é impossível esquecer. “Os profissionais de saúde foram tão grandiosos e isso me mostrou o quanto estavam preparados para aquela tragédia. A cidade se organizou tão rapidamente, antes mesmo que a Força Nacional do SUS tivesse chegado, dez horas depois do incêndio. Era como se cada pessoa estivesse no lugar certo para cuidar daqueles que foram vítimas da boate. Impressiona pensar que quem coordenou todo o socorro às vítimas era um profissional que tinha feito um treinamento para o atendimento de múltiplas vítimas, no Haiti, três anos antes. Me impressionou muito saber que 20 respiradores chegaram ao hospital universitário um mês antes e, na véspera do evento, o médico responsável sugeriu que fossem montados, como teste. A própria forma como os profissionais foram se apresentando voluntariamente, sem saber o que fariam, é emocionante. Eles se ofereceram para fazer qualquer coisa, até tirar o lixo, carregar corpos e fazer punção em cadáveres, o que nunca tinham feito. Santa Maria, num estado de guerra, conseguiu dar respostas rápidas”, destaca a autora que em “Todo dia a mesma noite” revela detalhes desconhecidos do público.

“Quando termina a notícia, começa a história. O distanciamento que tive me ajudou a estar aberta para olhar. Entendo que num evento dessa dimensão, o jornalista não teve tempo de reparar em detalhes como o dos políticos, que entraram na frente dos pais”, pontua, referindo-se à cena em que governantes e parlamentares acessaram o ginásio onde estavam os corpos antes dos familiares. “Tentei ler o menos possível quando comecei o trabalho. Não queria estar influenciada. Queria apenas ouvir aquelas pessoas. E foram dois anos em silêncio e isso é angustiante”, relata ela, que comprometeu-se com a editora a não revelar o tema do livro em processo. “Fui totalmente afetada por essa história, de uma maneira que não aconteceu nos outros livros. Mudei minha rotina familiar, passei por um período tendo muito medo de perder o Diego (filho), precisei de ajuda. Tive sequelas físicas: engordei oito quilos durante os seis meses da escrita. Era tão pesado que fiquei pesada também.”

 

‘A devastação ainda existe’

Como nos trabalhos literários anteriores de Daniela Arbex, “Todo dia a mesma noite” observa generosamente o homem sem limitá-lo. “Os bombeiros foram muito atacados, tiveram os nomes estampados nos jornais, então, estavam sempre na defensiva. Quando cheguei na casa do bombeiro, queria saber o que sentiu. Quando falou ‘Nós não salvamos ninguém’, não percebeu o tamanho da revelação que me entregava. Quando li o capítulo para ele, ele chorou muito e falou: ‘Você me levou para o último lugar que eu queria ter pisado de novo, mas fez de uma forma tão humana que quero te agradecer’. Não poupei os bombeiros, mostrei o tamanho da fragilidade deles, que estavam nervosos, que não conseguiram fazer o que sabiam, mas mostrei da forma mais humana que conseguia. O livro não tem maniqueísmos. Somos muita coisa, um caldeirão de sentimentos, ora fazemos coisas boas, ora fazemos coisas ruins”, avalia a escritora que não fecha os olhos para um controverso processo jurídico, mas não permite que ele ofusque o trauma que nem mesmo a justiça (ainda distante) é capaz de dar cabo.

Diferentemente dos dois títulos anteriores – “Holocausto brasileiro”, que vendeu mais de 300 mil exemplares e transformou-se em documentário da HBO, e o premiado “Cova 312” -, o novo trabalho da jornalista de 44 anos carrega consigo a agilidade do cinema, o desenrolar intrincado das ficções de suspense e o insólito próprio das tramas reais. Envolvente, sobretudo. “O leitor encontrará aqui inacreditáveis exemplos de vilania e de falta de compaixão, mas também surpreendentes gestos de grandeza humana, capazes de nos reconfortar. Este livro é uma recusa ao esquecimento. Ao tomá-lo nas mãos, você estará participando do imenso esforço coletivo para fazer da memória um instrumento de conforto e de respeito à dor alheia”, defende o aclamado jornalista gaúcho Marcelo Canellas em prefácio da obra.

Retrato de um Brasil de contrastes, “Todo dia a mesma noite” impacta por, no preto e branco das dores, buscar matizes capazes de fazer com que homens como Ananias se eternizem em sua potência e verdades. Memorial do passado para o futuro. “Não foi fácil conquistar a confiança daquelas pessoas, que já estavam muito marcadas e tinham sido muito exploradas. Da mesma forma que a fumaça continuou no organismo daqueles jovens, que saíram da boate, a tragédia não acabou no dia 27”, define Daniela Arbex. “Ela continua impactando a vida emocional e física das famílias. Todas as vezes em que voltava à Santa Maria, as famílias estavam diferentes. Nunca encontrei uma família da mesma forma que deixei. Nada é estático nessa dor. Ela continua ecoando. E é muito impressionante perceber o quanto essa devastação ainda existe. Eles (os familiares), hoje, são intoxicados por outras dores, pela saudade, pela injustiça, pela impunidade, pela falta de compreensão do tempo de luto que eles vivem.”

TODO DIA A MESMA NOITE
Lançamento nacional dia 25 de janeiro, em Santa Maria. Lançamento em Juiz de Fora dia 5 de fevereiro, às 19h, na Livraria Saraiva (Independência Shopping)

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