Viagem de tintas fortes
Tongala é uma pequena comunidade com cerca de 1.500 habitantes a menos de 200km de Melbourne, a segunda cidade mais populosa da Austrália. Predominantemente rural, o município tem sua economia baseada na produção leiteira, que inspira diferentes murais pintados sobre placas de madeira e dispostos ao redor do lugarejo. Nas cenas, florestas, operários, pescadores, feiras, fazendas e também latifundiários, tudo feito com pincel, em tons realistas. Ainda que sua casa fosse cercada dessas telas, foi preciso cruzar dois oceanos, Atlântico e Índico, para que Sophie Wilson respirasse arte. Saída das paisagens verdes, conheceu as ruas, o caos das ruas e a cor das ruas. Aportou em Juiz de Fora, empunhou um spray e grafitou murais. Como assinatura nos muros: Sophletta. Não escolheu figuras humanas, como as telas de sua Tongala. Preferiu mandalas. Quando não em muitas cores, escolhe apenas uma, vibrante. Quando se deslocou, a jovem de 25 anos, loira de impressionantes olhos azuis, fez arte com a própria história.
Por que veio?
Bastou uma paixão, e estava mudada a rota. Como veio parar aqui, Sophie? “Aí a história começa”, sorri, quase tímida, num português invejável pelo domínio de sensíveis metáforas. “Há alguns anos, estava na Austrália, trabalhando como secretária no consultório de um médico, mas queria fazer algo diferente. Gosto muito de línguas, letras, essas coisas. Decidi fazer um curso para ensinar inglês para estrangeiros. Queria viajar e dar aulas. No início fiquei confusa para onde ir, mas desde a infância sempre quis vir para o Brasil, conhecer a Amazônia. Cheguei primeiro na Colômbia, para viajar e conhecer a América do Sul. Gostei muito do Peru e decidi ir para lá dar aulas de inglês, mas acabei conhecendo o Davidson. Estava viajando com uma amiga que queria ir para Florianópolis. Eu queria conhecer o Nordeste, mas acabei a acompanhando e o encontrei lá, de férias. Ficamos apaixonados e como já tinha marcado de voltar para o Peru, fui e fiquei um mês. Quando cheguei de novo vim morar em Juiz de Fora. Fiquei quatro meses, e o visto acabou”, conta ela, com os olhos brilhando, referindo-se ao ilustrador Davidson Lopes, que lhe ensinou a grafitar. Sophie retornou para casa em agosto de 2014. Trabalhou mais um pouco, economizou dinheiro e regressou em abril de 2015. Para fincar pé. “Terminei o ensino médio e estava perdida. Sempre tive dificuldade de decidir o que quero para minha carreira. Tem muita pressão para fazer faculdade, no mundo todo. Minha família sempre foi muito legal comigo e me deixou livre para decidir. Eu não queria uma carreira só para trabalhar. Sempre senti que preciso estar com as pessoas. Gosto de conversar e ajudar pessoas. E entendia que faculdade não é só para formar e ganhar dinheiro, mas para fazer alguma coisa positiva”, diz ela, cuja mãe trabalha processando documentos de bolsas governamentais destinadas a pessoas idosas, doentes ou desempregadas. O pai é motorista de caminhão, o irmão é músico e enfermeiro, e a irmã, cabeleireira. “Percebi que era preciso sair de Tongala para conhecer melhor o mundo e a mim mesma”, pontua a jovem capaz de apontar semelhanças entre sua região rural e o estado de Minas Gerais que lhe acolheu. Diferenças? Muitas. “Não gosto muito de trânsito, cidade, gosto mais de natureza, rios, florestas, o que tem muito na minha região.”
Por que vai?
A ida, passado pouco mais de um ano, resultou em volta. As passagens, ainda não compradas, são projeto para março. Sophie retorna à sua Tongala. Ao lado, Davidson. “Estou feliz por voltar para a Austrália, rever minha família, mas, ao mesmo tempo, fico me perguntando quem sou eu australiana”, sorri. Bastou um deslocamento para encontrar o amor e se encontrar. “Fica aqui dentro. Tenho quase dois anos aqui, é pouco tempo, mas nunca esperei que ia fazer tantas raízes, amizades, me sentir tão em casa”, emociona-se ela, que se envolveu com a cena do grafite local, a família do hip-hop e também honrou o projeto e tornou-se professora. “Desde que cheguei, dou aula em cursos de inglês daqui. Estou com a agenda cheia, mas não somente de trabalho. Tenho dias cheios de aulas e outros mais tranquilos, nos quais dá para fazer arte e aula de capoeira. É mais uma ajuda para fazer raízes, porque conheci outros professores e os alunos. Ir embora é difícil.” O que leva, além do amor? Em primeiro lugar: a língua. “Às vezes ficava triste, porque entrava numa loja, dizia bom dia e a pessoa já me perguntava: ‘De onde você é?’. Aí eu pensava que estava falando o português mal. Será que não conseguia nem falar bom dia sem as pessoas perceberem que sou gringa! Mas não dá para esconder que sou estrangeira”, ri. Em segundo lugar: “gosto muito da cultura, além da natureza, que me chamou no início. Mas o país é muito grande. Cada estado tem uma cultura diferente. Ainda tenho muita coisa para conhecer. As pessoas aqui têm paixão pela arte. Respiram a arte todos os dias”, exalta. Em terceiro lugar: uma lição bem à moda brasileira. “Gosto muito de planejar as coisas, mas aprendi que não pode, porque, às vezes, o universo tem algo melhor para você.”