Peça ‘Nastácia’ leva personagem criada por Dostoiévski, em 1869, para palco de JF

Apresentações acontecem no Teatro Paschoal Carlos Magno neste sábado (20) e domingo (21), às 20h e às 19h


Por Elisabetta Mazocoli

18/09/2025 às 07h00

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‘Nastácia’ foi idealizada e interpretada por Flávia Pyramo (Foto: Guto Muniz)

A peça “Nastácia” chega em Juiz de Fora para duas apresentações com uma montagem que coloca em foco uma personagem secundária criada por Dostoiévski em 1869, no livro “O idiota”, dessa vez direcionando o protagonismo à ela. Com uso de elementos contemporâneos e assumindo a violência infligida contra ela com o mesmo cuidado em que é mostrada a sua força, toda a produção se passa na data de aniversário da personagem. O espetáculo recebeu os principais prêmios de teatro do país e está em cartaz desde 2019, tendo passado uma temporada em Avignon, na França. As performances vão acontecer neste sábado (20) e domingo (21) no Teatro Paschoal Carlos Magno, às 20h e 19h, respectivamente. A produção local é de Vinicius Cristovão e Renata Peralva.

A peça tem direção de Miwa Yanagizawa e dramaturgia de Pedro Brício, com uma montagem que une teatro, videoarte e uma instalação cênica criada pelo estilista Ronaldo Fraga. A personagem principal é interpretada por Flávia Pyramo, que também é a idealizadora do projeto. Muito antes de interpretar o papel, ela assistiu a uma peça sobre Katerina Ivánovna, personagem de “Crime e castigo”, do mesmo autor, que também tinha a lógica de destacar a história de uma coadjuvante feminina dando enfoque para a sua força. Ela teve vontade de fazer o mesmo com Sónia, desse romance, entendendo que o autor conseguia criar personagens complexas que mereciam mais atenção. Até que assistiu uma adaptação de 7h de “O idiota” e conheceu o que se tornaria o seu novo projeto.  “Conheci Nastácia no teatro e fui arrebatada pela força daquela mulher. A partir da peça, fui ler o livro e aí não teve jeito, me apaixonei de vez e meu projeto de vida passou a ser contar a história dela”, relembra.

Para a atriz, colocar a personagem em foco era uma mudança de perspectiva daquela história, mas que também mostrava o quanto o texto de Dostoiévski permanecia atual. Essa é a beleza dos clássicos: “Colocar Nastácia no centro do palco para contar a própria história é uma atitude que nós mulheres já estamos tendo. O melhor seria se não precisássemos lutar pelo nosso protagonismo e pelo nosso espaço, para poder ter a fala. Mas dar voz à Nastácia é dar voz a nós, mulheres”. Ao mesmo tempo em que há o fascínio de poder olhar para um texto de décadas atrás com esse encanto, ela explica que também há a tristeza na constatação de que não ocorreram mudanças o suficiente na sociedade desde então. “É impressionante uma história de uma mulher ser contada em 1869 e essas histórias ainda existirem ainda hoje com números alarmantes. Vemos a que passos estamos caminhamos”, reflete. 

Além de Nastácia, a história também inclui os personagens Totski (interpretado por Chico Pelúcio) e Gánia (interpretado por Lenine Martins). Quando idealizou a montagem, Flávia já pensava em trazer essa dinâmica entre esses personagens, mas foi entendendo o que era o cerne da história ao longo do desenvolvimento. “Quando idealizei a montagem de Nastácia, não pensei ‘vou fazer um espetáculo sobre feminicídio’. Foi um apaixonamento por ela de forma intuitiva, fui sequestrada por aquela história. Mas fui tendo essa clareza sobre o que aquela história era durante o processo, até porque o entendimento de feminicídio é muito recente”, explica. Esse entendimento não ocorreu tardiamente apenas para ela — mas também para muitos leitores da obra do autor, que também contaram pra ela que nunca tinham se dado conta de que a história dela era de feminicídio. “Não dávamos esse nome antes, não olhávamos dessa forma. Mas é uma história típica de feminicídio, motivada pela vontade de posse da mulher, a ideia de que se não é minha não vai ser de ninguém. Então podemos trazer um olhar atual para o clássico”, revela.

Tornando-se Nastácia

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Espetáculo acontece no aniversário da personagem e conta com Totski e Gánia (Foto: Alexandre Rezende)

Ao completar seis anos interpretando a personagem nos palcos, Pyramo também entende todos os esforços que ela exige e o que mudou desde que falou suas falas pela primeira vez. “ A Nastácia me exige disposição física e emocional para encontrar a personagem. Ela exige 100% de tudo que eu tenho como mulher e atriz. Todas as noites são um desafio constante”, conta. Muito disso é um processo interno, mas outra parte também é do contato que teve com as pessoas. “Muitas mulheres compartilham comigo suas histórias. Isso é bonito, esse encontro e fortalecimento, mas ao mesmo tempo é dilacerante. Dói, são muito tristes as nossas histórias, essas histórias que ainda vemos acontecendo com uma prima, uma irmã, uma amiga, uma espectadora”, diz.

Quando questionada se imagina Dostoiévski assistindo um dia à peça, ela diz que o chama todas as vezes antes de entrar no palco. Também outras pessoas passaram a ver nela essa figura: é o caso, como conta, de Paulo Bezerra, tradutor do autor, que disse a ela ter visto Nastácia em sua frente. É tanto uma responsabilidade quanto um prazer: “Hoje, tenho mais consciência da necessidade de fazer esse espetáculo e de falar sobre isso, de fortalecer essa luta e avolumar o grito por ‘Chega!’. Feminicídio zero é o que a gente merece”.

Anacronismos para um novo fim

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Peça está em cartaz desde 2019 e já passou temporada na França (Foto: Guto Muniz)

Contar uma história do século 19, em 2025, precisa conter atualizações e novos olhares — esse é o sentido que Pyramo encontra na produção. “A peça traz um clássico com uma linguagem contemporânea. Durante toda a montagem temos uma mistura de tempos, épocas e espaços. Ao mesmo tempo que estamos em São Petersburgo, estamos em JF. É anacrônica em tempo, espaço, personagens. Hora eu sou Nastácia, hora Flávia, hora mulher. (…) Estamos atravessando os tempos com a mesma história”, diz. Um dos elementos que a peça passou a incorporar durante a passagem pela França, inclusive, foi a menção a Gisèle Pelicot, mulher francesa que foi vítima de um estupro em massa. Lembrar de Nástacia, para ela, é falar de todas que sofreram opressões assim: “É uma personagem que está viva, embora tenha sido assassinada em 1869. Essa alma feminina que busca seu espaço, seu lugar e seu direito de viver, está muito presente. No palco sinto isso, inclusive quando trazemos histórias de mulheres dos nossos tempos e dos tempos passados”. 

O anacronismo na estrutura da peça, para ela, também é uma forma de repensar essas histórias, e de ter a possibilidade não só de olhá-las por outros ângulos, mas também de imaginá-las com outros destinos. “O desejo é que Nastácia tivesse outro final. Para isso, a gente deseja, então, que as mulheres do nosso tempo tenham finais menos sombrios do que aquele que Dostoiévski escreveu”, diz.

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