Entre cânions e história, turismo de Capitólio se transforma após tragédia
Passeio pelo Vale dos Tucanos expõe memória da tragédia e novas dinâmicas do turismo
No Mar de Minas, uma das atrações é o Vale dos Tucanos. O nome surgiu porque, antes de a região se tornar movimentada, viviam ali cerca de 30 casais da ave. Atualmente, eles migraram para a parte de trás da serra. “Mas, com sorte, a gente consegue visualizar um ou outro sobrevoando”, explica o condutor da lancha, Wedson Souza Azevedo Júnior, 26, no início do passeio realizado pela Tribuna para a sexta reportagem da série Tribuna por Minas. Logo na entrada do vale, a sorte se confirma quando dois exemplares aparecem, cada um pousado em uma das árvores que compõem a vegetação no alto dos paredões.

A paisagem causa impacto imediato. Entre os paredões, por um trecho com cerca de 30 a 40 metros de largura, o sol não incide. Assim que a embarcação entra, o motor é desligado, e o silêncio passa a ser preenchido apenas pelo canto dos pássaros e pelo barulho da água que o barco vai deixando para trás. Mesmo quando outras lanchas cruzam o caminho em sentido contrário, ninguém fala. Os passageiros parecem respeitar um pacto tácito de contemplação.
Antes da saída, o patrão de Júnior, Seu Luís, orienta os visitantes a aproveitarem o momento para orar e observar a paisagem que, segundo ele, “Deus fez pedra por pedra”. A espiritualidade é de fato forte em um lugar como esse. E quem não acredita, começa a pensar na perfeição das formações geológicas de milhões de anos atrás.
“Se seguir daqui e for até à Chapada Diamantina, na Bahia, as formações são todas iguais, por isso dá para saber que era uma divisa de placa tectônica”, explica o guia. “Provavelmente, milhões de anos atrás, o magma, com a pressão e temperatura, se reorganizou e fez a Pedra São Thomé. Veio a pressão e fez uma camada, depois outra, depois outra. É laminar.” Em tom descontraído, ele lembra ainda da versão do avô: “Quando eu era criança, meu avô falava que foi ele que empilhou tudo isso aí”.
Segundo Júnior, um dos paredões tem uma lenda: quem está apaixonado consegue ver um coração. “Eu venho aqui todo dia e nunca vi, mas ontem o rapaz falou que o coração estava até pulsando”, brinca.
As formações rochosas revelam também o nível do lago. No dia da visita, o reservatório estava com 48% da capacidade, oito metros de profundidade e nove metros abaixo do nível máximo, registrado entre fevereiro e março. O caráter laminar das pedras, inclusive, foi determinante na queda do bloco que provocou a tragédia em Capitólio, em janeiro de 2022, quando dez pessoas morreram e 20 ficaram feridas. Júnior, que viveu o terror daquele dia, lembra que a lancha atingida fazia parte da sua história. “A lancha Jesus, a do acidente, foi a primeira em que trabalhei e a primeira que aprendi a pilotar.”
Desespero e reestruturação
“Tinha acabado de sair lá de dentro, na hora do acidente”, relata. Ele viu outras embarcações se aproximando, mas não imaginou a gravidade do que ocorria. “Achei que era alguém fazendo graça e continuei meu passeio.” Só ao receber a ligação da patroa, durante uma das paradas, percebeu que algo errado havia acontecido. “Ela disse ‘parece que caiu uma pedra no pessoal’, mas sem detalhes. Quando cheguei ao Turvo, estava aquele pandemônio.”
O irmão, que trabalhava na Marinha e também estava em serviço, foi outro a procurar notícias e enviou o vídeo do momento do desmoronamento. “Na hora, já bateu o desespero para ver se tinha algum conhecido. Você pensa: ‘Morreu todo mundo que eu conheço’. Infelizmente, o piloto que faleceu era meu amigo, e tinham três pessoas da minha cidade na lancha.”
Mesmo abalado, Júnior ajudou nos resgates, ao lado do irmão. Hoje, com a necessidade de continuar mantendo o sustento e com o costume de voltar a fazer os passeios, é uma página virada para ele e também para o próprio turismo da região. “É outro turismo, totalmente estruturado. As pequenas empresas foram embora. E atingiu não só Capitólio, mas o turismo de natureza do Brasil inteiro. O Cânion de Xingó teve que se adequar por conta do acidente aqui, um monte de lugar de encosta teve que fazer estudo.”
Mudanças mais simples, como a necessidade de informar à Marinha os dados pessoais de cada tripulante também foram implementadas. O público é outro aspecto que mudou. “Na época do ‘boom’, a gente tinha um turismo muito de curtição, de badalação. Era muita excursão de bate-volta. Aqui ficava lotado de lancha, todas com som alto.”
Após o acidente, a quantidade de turistas caiu pela metade, mas, segundo Júnior, o público atual busca experiências mais completas. Muitos visitantes incluem também a Serra da Canastra nos roteiros, ficando na região por uma ou duas semanas. O tíquete médio também aumentou.
Turismo em Capitólio
No local, os passeios seguem dois formatos: o compartilhado, com valor tabelado de R$ 120 por pessoa, e os agendamentos com lancha exclusiva, variáveis conforme roteiro e número de passageiros. Os roteiros padrão incluem cânions, Vale dos Tucanos, cachoeira Lagoa Azul e um bar flutuante.
Para se ter uma ideia do quanto a atividade movimenta a região, apenas na empresa em que Júnior trabalha, são seis pilotos durante toda a semana, mais freelancers nos fins de semana. Uma curiosidade que contam é a quantidade de figuras conhecidas que possuem casas no alto das margens por onde passam: os políticos Rodrigo Pacheco e Cássio Soares, Gusttavo Lima, Pedrinho BH, Vinicius, da dupla com João Bosco, e os ex-jogadores Marcelo e Djalminha. O parque aquático Tuná, o maior de Minas Gerais, também fica na região.
Os condutores indicam restaurantes e bares conforme o perfil dos clientes. Um dos pontos mais procurados é o Restaurante Beach Clube, na Prainha, que possui área de camping e recebe eventos de off-road. A administração é de Quênia, conhecida como Fofa, que se mudou de Nova Serrana com a família depois que uma amiga venceu licitação de dez anos. Antes, eles tinham uma fábrica de sapatos. “Nós viemos para cá porque a qualidade de vida não tem igual. Não tem dinheiro no mundo que paga. Isso aqui que nós estamos vivendo hoje é o paraíso”, afirma
Na baixa temporada, diz que conseguiu manter as atividades, mas agora tem uma média de público de duas a três mil pessoas no mês. Em eventos específicos, o fluxo chega a duas mil pessoas. Em julho, durante encontro de motorhomes, um levantamento mostrou gasto superior a R$ 300 mil nos estabelecimentos locais.
“O pessoal que vem de fora gasta mais. Nosso público-alvo aqui é os turistas. Mesmo quem vem de cidades próximas, como Alpinópolis, Passos, São João Batista do Glória, São Sebastião do Paraíso, Franca ou Ribeirão Preto, chega como turista. Muitas excursões vêm do Rio de Janeiro também”, detalha. Segundo Júnior, os paulistas lideram o fluxo, seguidos pelos cariocas, além de um número crescente de estrangeiros, com destaque para franceses.
Tópicos: Capitólio / Tribuna por Minas / Vale dos Tucanos












