De Fama a São José da Barra, a travessia é sonho feito de brisa
Tribuna experimenta, ainda em fase inicial, cruzeiro que atravessa o Mar de Minas, na quinta reportagem da série “Tribuna por Minas”

O vento corta o rosto, a junção do verde dos matos e pastos e campos pela orla, com o azul petróleo das águas que parecem infindas, e o marrom claro da terra que substitui a areia, faz um homem querer ter nascido na pele de um dos cavalos que pastam tranquilamente à beira do rio Sapucaí, onde se inicia a Travessia: “Sonho feito de brisa, vento, vem terminar“.
Quando Milton Nascimento canta “eu não quero mais a morte, tenho muito o que viver“, ele tem a sensação de estar em um barco a 40 nós (75 km/h) de velocidade, indo em direção a São José da Barra – a 507 quilômetros de Juiz de Fora –, pelo Mar de Minas. O cruzeiro, feito ainda na fase experimental pela Tribuna, é tema da quinta reportagem da série “Tribuna por Minas”.
Esqueletos de árvores brotam inesperadamente de dentro das águas ao longo do caminho, e o azul que se transforma em verde-mais-água-do-que-nunca dá ideia da junção de todas as formas de vida: terrestres, aquáticas, e aéreas, nos pássaros que passam rasantes, como quem sente sede, da água e da vivência.
Tudo se inicia na cidade de Fama – a 385 quilômetros de Juiz de Fora –, terra da tilápia, como diz a bandeira que uma professora municipal ostenta logo na chegada, recepcionando os navegantes.
Valéria Serafim faz questão de recitar um poema de autoria própria: “Fama, que no raiar de um novo dia, nos desperta harmonia. No seu íntimo, transborda o silêncio dos mais diversos lugares. És o lugar sagrado, o chão santificado por Deus. Quem mergulha em tuas ruas, banha em tuas águas e aprecia o pôr-do-sol se sente muito mais humano”.
O trajeto passa pela Ponte das Amoras, com 996 metros de extensão, construída no mandato de Juscelino Kubitschek, que liga Alfenas a Campos Gerais. Alguns operários morreram na construção, diz a presidente do Circuito Turístico Lago de Furnas e proprietária de uma agência de receptivo, Thayse de Castro, responsável pelo Cruzeiro Mar de Minas.
Alguém brinca que é a Ponte Rio-Niterói, e de fato parece uma versão tão mineira quanto o mar. Nuvens escuras encobrem o sol e deixam faixas azuis no céu e douradas no “chão”, quando se abre um repentino clarão. O barco à frente agita ondas tão recatadas quanto um bom mineiro e faz lembrar ainda mais mar.
Há um barco pesqueiro próximo a uma igrejinha. Fileiras de coqueirais emolduram o corpo d’água. Após duas horas de viagem, começam a aparecer pequenas civilizações à beira. Elas fazem pensar como se sustentam no meio do “nada”, que, na verdade, possui tudo que, muitas vezes, não se encontra nos grandes centros: paz.
A combinação extremamente única de tanta água com tanto verde, tão próximo e tão constante, é como se fosse andar pelas estradas de Minas, com a já conhecida paisagem campestre. Aquelas pelas quais Milton solta a voz e já não quer parar. Nestas, a via é a mais lisa e fluida possível.
Em certo momento, a textura da água muda. O relevo do Mar de Minas é muito dividido, explica o comandante da embarcação, Rony Monteiro: “Em boa parte da viagem, estava tranquilo, no finalzinho pegamos muito vento em uma parte que sempre tem, porque é um local mais aberto, e mexe muito a água. Nós chamamos de lagão. E tem locais que, quanto mais você vai entrando, mais fechado vai ficando com montanhas em volta, e aí fica aquele espelho, aquela água em que você navega e parece que você está em cima de uma rede. Você não sente o barco balançar. É um espelho d’água. E é uma parte muito bacana no passeio, também, porque você sente que está flutuando ali”.

As estradas do capitão
Rony morava em Taubaté, no interior de São Paulo. Um dia, foi a passeio conhecer o Mar de Minas, a bordo da lancha do Seu Zezinho. “Eu era apenas um turista”, relembra, “fiquei encantado pela região e brinquei com ele em relação a vir morar aqui e trabalhar para ele. Nessa, ele também brincou comigo: ‘Vem mesmo’. Voltei para São Paulo, tirei a carteira de marinheiro e, três meses depois, cheguei aqui com uma geladeira, um colchão e uma mesa.”
E lá se vão oito anos. Em todo esse tempo, não percorreu nem 5% do lago, de tão grande que é. “Eu tenho vontade, tem hora, de pegar um barco assim mesmo e só atravessar o mar para ver até onde ele vai. É que nem eles falam, ‘vontade de pegar uma estrada e só seguir nela, ir embora, só andar’”, compara. O trajeto mais longo que fez é justamente esse realizado com a Tribuna, que dura cerca de 5 horas de navegação, sem paradas.
Dono de uma agência de turismo, também conduz um jipe 4×4, em passeios pela Serra da Canastra. Na vida anterior, dirigiu ônibus por sete anos. Em vez das montanhas, viajava entre o Vale do Paraíba e o Terminal Rodoviário do Tietê, e em vez da natureza, desbravava o trânsito. “Depois que a gente conhece essa região em que estamos, a gente vê que existem vários cantinhos do mundo em que se tem condições de ter uma qualidade de vida melhor”, garante.
Até o modo de lidar com as pessoas muda: “Aqui as pessoas vêm para se divertir, então cabe apenas a nós fazer o nosso melhor e poder transmitir essas belezas que tem aqui na região para as pessoas que tudo dá certo. Lá o povo saía estressado do serviço, entrava dentro do ônibus e descarregava no motorista”.
Até acontece de, raras vezes, alguém ser mais ríspido mesmo em meio a tanta beleza. A saída é simples: “Quando alguém tá ‘meio assim’, eu falo ‘ô, fi, vamos aproveitar essa natureza linda que Deus deu aqui pra nós, vamos deixar pra resolver os problemas depois’”.
Quem aproveita o passeio é quem proporciona a sensação mais prazerosa de tudo isso, para Rony: poder observar o olhar das pessoas deslumbrando-se com o mar infinito, as paisagens e as montanhas.
“Você descobre que você passeia todo dia”, explica, “é o tal do fazer o que gosta. Você não trabalha, você vive todos os dias uma experiência diferente, em que você conhece pessoas diferentes, então isso é muito prazeroso”. É claro, tudo tem o suor do trabalho, mas, “se suar muito, é um mergulho e tira o suor”. Diria Bituca: “Já não sonho, hoje faço, com meu braço, o meu viver”.
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