Documentário ‘Vozes ancestrais’ retrata memórias e resistência das religiões afro em Juiz de Fora

Produção destaca histórias silenciadas e a resistência cultural na cidade


Por Mariana Souza*

16/07/2025 às 07h00

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Documentário propõe abrir espaço para relatos pessoais, sem um roteiro rígido ou muitas intervenções da equipe (Foto: Divulgação)

O documentário “Vozes ancestrais” será lançado, oficialmente, no dia 7 de agosto, às 19h, no Terreiro Filhos de Pemba, localizado na Rua Bernardo Mascarenhas, 829 – galpão 08, no Bairro Fábrica. 

Realizado com recursos do Programa Cultural Murilo Mendes, por meio do edital Quilombagens, o filme traz relatos e reflexões sobre as religiões de matriz africana em Juiz de Fora a partir de depoimentos de líderes religiosos e discute questões como o racismo religioso e a invisibilidade histórica dessas tradições no Brasil. 

Com 80 minutos de duração, a produção percorre quatro terreiros da cidade: o Centro Espírita Santo Antônio de Umbanda – conhecido como Pé de Ferro e prestes a completar 100 anos –, o Terreiro Filhos de Pemba, a casa da Mãe Janaína e o terreiro fundado pelo Pai Jaques, considerado o mais antigo de Candomblé em Juiz de Fora. Ao todo, seis lideranças foram entrevistadas.

“Muitas histórias foram apagadas e invisibilizadas por falta de registros. Até hoje não conseguimos realizar um censo que mostre quantos terreiros existem na cidade. Nossa intenção foi justamente aproximar essas histórias do público e registrar experiências marcadas pelo preconceito e pela resistência”, explica o músico, pesquisador e professor da UFJF, Carlos Fernando.

A proposta do documentário foi abrir espaço para relatos pessoais, sem um roteiro rígido ou muitas intervenções da equipe. “Acredito que, além da importância histórica e cultural, foi fundamental deixar que as pessoas entrevistadas falassem com as próprias vozes. Um dos entrevistados, o Pai Jaques, nos contou que nunca havia sido filmado antes”, destaca a proponente do projeto e responsável pelas captações, Natália Ferreira.

Ela relata que a maior dificuldade foi conquistar a confiança dos entrevistados. “As pessoas ficam desconfiadas das intenções de filmar, e isso tem relação com o preconceito e a desinformação que ainda cercam essas religiões”, avalia.

Para Carlos Fernando, dar espaço a essas vozes trouxe uma dimensão emocional ao trabalho. “O que mais me chamou atenção foi perceber a autoestima dessas pessoas quando eram ouvidas. Durante muito tempo, elas foram silenciadas e passaram pela vida quase invisíveis. Ver o brilho nos olhos delas ao contarem suas histórias foi uma experiência rica e transformadora.” A produção está disponível no YouTube.

Ancestralidade como resistência

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Para Pai Luciano o filme cumpre um papel pedagógico (Foto: Divulgação)

Pai Luciano, do Terreiro Filhos de Pemba, também reforça a importância de ocupar espaços. “É um momento de honrar toda a nossa ancestralidade, africana e indígena. Esse documentário permite propagar a verdade sobre a Umbanda e a Macumba, tão diferente do que se propaga na sociedade, marcada por racismo estrutural e religioso”, afirma.

Ele lembra que as práticas afro-brasileiras existem no Brasil desde o período colonial, muito antes do marco histórico da Umbanda em 1908. “A tendência, ao longo dos anos, foi excluir tudo o que era do povo preto, visto como demoníaco e atrasado. Hoje, é urgente combater essas ideias e valorizar as tradições que sustentaram comunidades por gerações.”

Para ele, o filme cumpre um papel pedagógico. “Precisamos de ferramentas para acessar a população e quebrar paradigmas sobre o que é a Umbanda e a Macumba. Gosto de frisar que Macumba não é algo negativo; é um instrumento musical. Precisamos desmistificar e resgatar o verdadeiro significado dessas palavras e práticas.”

O título do documentário resume o objetivo do projeto. “Vozes Ancestrais porque essas religiões se fundamentam na ancestralidade. Cultuamos nossos antepassados, sejam eles divinos ou humanos. Respeitar esse conhecimento é essencial para manter viva a essência das tradições e evitar rituais criados sem raiz histórica”, completa Pai Luciano.

Para Natália, o resultado alcançado vai além do filme. “Acredito que o documentário traz a perspectiva e a dor dessas pessoas, criando um contato mais próximo e menos contaminado por estigmas. Nosso objetivo era justamente esse: dar visibilidade e voz a quem foi historicamente silenciado.”

Religiões afro-brasileiras ganham espaço em Juiz de Fora

As religiões de matriz africana vêm ganhando mais visibilidade e adeptos em Juiz de Fora. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do Censo 2022 apontam que a soma de praticantes da Umbanda e do Candomblé na cidade passou de 0,35% em 2010 para 1,18% em 2022 – um crescimento expressivo em termos proporcionais. Entre os praticantes, 2,2% se declararam amarelas e 1,1%, brancas. A faixa etária com mais adeptos é aquelas entre 20 e 49 anos.

Apesar desse avanço, lideranças locais chamam atenção para desafios que acompanham a expansão. “As religiões de matriz africana ganharam maior visibilidade na sociedade, muito por causa das redes sociais e outras ferramentas de comunicação. Mas é preciso discutir a qualidade dessa visibilidade”, analisa o Pai Luciano, do Terreiro Filhos de Pemba.

Ele observa que, ao mesmo tempo em que cresce o interesse pela Umbanda, há sinais de um distanciamento de suas raízes. “A Umbanda está se tornando pop, mas muitas vezes numa versão embranquecida, afastada de sua essência. A nossa casa tem uma fundamentação afrodiaspórica, de povos pretos e originários. Quando alguém com forte influência católica ou espírita vai até lá, muitas vezes não se sente confortável. Isso porque trazemos uma verdade que desafia o pensamento predominante de que a macumba é algo negativo.”

Para Pai Luciano, é positivo que mais pessoas busquem a Umbanda, mas ele ressalta que é fundamental entender suas origens. “A essência da Umbanda não é o cristianismo nem a doutrina espírita. É uma filosofia de vida com raiz africana e ameríndia. Precisamos que esse crescimento venha com compreensão e respeito à nossa história e práticas.”

Ele destaca, ainda, a importância de um trabalho pedagógico contínuo dentro das comunidades: “Vamos transmitindo os ensinamentos da Umbanda de forma gradual e metódica. Não é uma religião no sentido convencional, mas uma forma de viver filosoficamente.”

Pai Luciano reforça o peso histórico das religiões de matriz africana no país. “O Brasil é o que é hoje porque foi construído sobre o suor e o sangue do povo preto trazido de forma violenta para cá. Essa ancestralidade precisa ser reconhecida e respeitada.”

*Estagiária sob supervisão da editora Gracielle Nocelli

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