Ah, se todo dia fosse o Ășltimo!
“Acho que Ă© hora de dizer adeus.” Fiona diz a frase e beija Dom. Acho que Ă© hora de dizer adeus. Um espectador grita “Viva o Palace!”. Todos aplaudem. No filme “Perdidos em Paris”, a personagem Fiona anuncia o fim, beija Dom, mas logo decide ficar mais um pouco, e sĂł entĂŁo rolam os crĂ©ditos. O Cine Palace, nĂŁo. Fim Ă© fim. NĂŁo houve prorrogação como na trama da Ășltima sessĂŁo, exibida Ă s 20h15 da Ășltima quarta, 14.
Com ingressos esgotados cerca de uma hora antes, a Ășltima sessĂŁo serviu como ode ao cinema. Francesa, a comĂ©dia resgata o humor elegante de Jaques Tati e a crĂtica sutil de Charles Chaplin, diz de uma arte que se faz com a consciĂȘncia da potĂȘncia da imagem em movimento, com a confiança nos silĂȘncios e com a possibilidade do que Ă© surreal. Cinema em sua inteireza. Cinema como souvenir.
O insĂłlito na Ășltima sessĂŁo do Cine Palace nĂŁo se fazia especialmente pelo cheiro de mofo da sala 1, com seus 225 lugares, mas pelo tom constrangido das presenças. Uma, duas, trĂȘs, vĂĄrias selfies, com ou sem o ingresso nas mĂŁos, demarcavam a excepcionalidade do gesto.
Pela primeira vez desde que foi contratada como bilheteira, em 2013, passando a gerente no ano seguinte, Ana viu uma sessĂŁo ter mais bilhetes vendidos do que a prĂłpria lotação da sala. Muitos, segundo ela, compraram e sequer foram. Compraram para ter o ingresso da Ășltima sessĂŁo. “Muitos curiosos nos Ășltimos tempos.”
A mulher impopular
EufĂłrica, a gerente lamenta pela extinção dos projetos populares e pelo pequeno pĂșblico frequente. E reconhece a inviabilidade de um negĂłcio que nĂŁo ultrapassava 25% de seu potencial. Enquanto Ana fala, cerca de 50 manifestantes unem as mĂŁos para, simbolicamente, abraçar o prĂ©dio. Sobra construção e falta gente. O abraço nĂŁo se completa.
Ana mostra os nĂșmeros. Tristes nĂșmeros que eram diĂĄrios: Na Sala 1, com capacidade para 225 espectadores, na sessĂŁo das 14h, estavam presentes 63 pessoas, 28% da lotação. Ao filme das 16h assistiram 107, menos de 50% da possibilidade. Ăs 18h20, 208 espectadores encheram a sala, elevando o percentual em 92,4% do total permitido.
Na Sala 2, porĂ©m, onde era exibido “Mulher maravilha”, o esvaziamento era ainda mais cruel. Eram 24 pessoas na sessĂŁo das 14h, 24 na sessĂŁo das 17h e 38 na Ășltima sessĂŁo da sala, Ă s 20h. No Ășltimo dia, a sala do segundo andar teve 13,2% de sua ocupação preenchida nas duas exibiçÔes vespertinas e 20,9%, na derradeira. Camila, da bilheteria, afirma que essa era a realidade.
Os gatos pingados
O vendedor de churrasquinho, do outro lado da rua, na esquina da Batista de Oliveira com a Halfeld, estranhava a longa fila final. Eram uns “gatos pingados” que compravam dele refrigerante para acompanhar a pipoca do carrinho da frente, que carrega na lataria a inscrição Pipoca Mattos.
NĂŁo vai mudar de ponto a pipoqueira. O movimento deve cair, mas ela tem fĂ©. “Vai voltar daqui a uns tempos, se Deus quiser!” A mesma tranquilidade tem Alexandre, o mais antigo funcionĂĄrio do Palace, hĂĄ 18 anos no local, desde sua reforma para a reabertura em 1999. Vai fazer o que agora? Descansar, ele responde.
Emprego nĂŁo deve faltar, garante Alexandre, que faz de tudo um pouco. Ă pedreiro, pintor, marceneiro, serralheiro e, principalmente, um dos que mais entende de projeção de cinema na cidade. Os dois projetores de 35mm doados pelo Palace ao Cine-Theatro Central, jĂĄ inutilizados nos Ășltimos meses, devem precisar dele na nova casa.
Os filmes que vimos
A gerente da FĂĄbrica de Doces Brasil nĂŁo sabe precisar se e quando a lanchonete sairĂĄ do hall do prĂ©dio. Sabe que as portas continuam abertas. No lugar onde todos parecem saber mais do que podem falar, a Ășnica certeza Ă© a de que a subutilização justifica, se nĂŁo totalmente, ao menos parcialmente a situação atual. E nĂŁo se trata apenas de pĂșblico.
Ana mostra o segundo andar com as salas gerenciais e banheiros de funcionĂĄrios, alĂ©m dos espaços para ar-condicionado. JĂĄ Alexandre levanta a porta de metal na Batista de Oliveira e nos guia pelas estreitas escadas atĂ© o terceiro andar do prĂ©dio com suas fachadas e volumetria tombadas pelo municĂpio.
Enquanto no quarto andar sĂł cabe a caixa d’ĂĄgua, no terceiro andar estĂŁo duas grandes salas, um banheiro, uma saleta para mĂĄquinas e um terraço onde ficam outros aparelhos de ar-condicionado. Numa das salas, amontoam-se cartazes antigos, feito lixo. Alexandre levanta alguns. “Laura, a voz de uma estrela”, de 1998; “Nove rainhas”, de 2000; “Scooby-Doo 2”, de 2003. “Coisa do tempo do onça”, diz.
Guardo comigo o pequeno cartaz de “Billy Elliot”, de 1999, que acompanhava o rolo para exibição. “NÂș de partes: 12”, especifica o papel, referindo-se ao trabalho que Alexandre executou semanalmente durante anos. A alguns filmes ele assistia inteiros, outros, nĂŁo. Na Ășltima sessĂŁo do Ășltimo cinema de rua da cidade, ele nĂŁo estava presente. JĂĄ tinha terminado o expediente.
A educação nossa
A professora de artes Chintia aguardava começar a sessĂŁo derradeira enquanto recordava-se do tempo em que trabalhou na mesma sala onde hoje se acumulam cartazes antigos. Integrante do nĂșcleo de arte-educação do espaço, logo na reabertura do espaço, ela recorda-se de uma turma formada por cerca de dez professores, que faziam atividades com crianças de escolas locais apĂłs sessĂ”es especĂficas.
O primeiro filme do projeto foi “Kiriku e a feiticeira”, de 1998. Os pequenos estudantes saĂam das sessĂ”es e discutiam e interpretavam a animação, no hall do cinema. A segunda produção, no ano seguinte, com uma equipe de arte-educação jĂĄ enxuta, foi a versĂŁo da dĂ©cada de 1950 de “O SĂtio do Picapau Amarelo”, em preto e branco.
Era visionĂĄrio o projeto que oferecia bons salĂĄrios aos seus profissionais, material de primeira qualidade aos atendidos e que chegou ao fim logo em seu segundo ano. “NĂŁo vingou.” Como nĂŁo “vingou” o desejo de tornar Ăștil o agigantado espaço sobre a sala do segundo andar. De acordo com Alexandre, jĂĄ foi projeto fazer dali um conjunto de salas.
O poço de elevador denuncia o sonho de ocupação de um salĂŁo com dez janelas e dois basculantes e algumas centenas de metros quadrados, vazio em pleno CalçadĂŁo. Ana, a gerente, lamenta o lugar nĂŁo servir como um grandioso complexo cultural, com trĂȘs andares, muitas salas e atividades.
Antes da Ășltima sessĂŁo, Ana atende o telefone e informa: “O Cine Palace fechou. O Festival Varilux continua no Santa Cruz Shopping”. Do lado de fora, cartazes criticam: “Procuram-se cinemas de rua”. Enquanto o Ășltimo filme Ă© exibido no Palace, Ana retira os papĂ©is das paredes. Acabam-se as referĂȘncias ao cinema. Acho que Ă© hora de dizer adeus.