Decreto referente ao Programa Murilo Mendes gera debate sobre incentivo
Regulamentação da Comic para o período 2021/2024 foi publicada sem passar pelo Concult e causou estranhamento entre conselheiros; em reunião, Funalfa sinaliza com a distribuição de R$ 2 milhões para o setor em 2021
A prefeita Margarida Salomão (PT) instituiu a Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic) em 6 de maio por meio do Decreto 14.522/2021. O ato é um despacho ordinário do Executivo, uma vez que regulamenta a aplicação dos recursos do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura. A Comic é justamente o órgão responsável por selecionar os projetos a serem financiados no âmbito Programa Cultural Murilo Mendes. Entretanto, a publicação do instrumento surpreendeu os representantes da sociedade civil no Conselho Municipal de Cultura (Concult). Conforme conselheiros, quando publicado, o decreto ainda não havia sido apresentado ao Concult. Além disso, o período de mandato dos membros da Comic, bem como a ausência de valor específico para o Programa Murilo Mendes, alertou os conselheiros. O decreto, inclusive, foi pauta de reunião ordinária do Concult realizada na última quarta-feira (12).
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A princípio, a própria publicação da regulamentação no Diário Oficial Eletrônico do Município já surpreendeu conselheiros. “Fomos informados, comunicados sobre o decreto. Não fomos consultados. Não sabíamos”, afirma a vice-presidente do Concult, Anna Onofre, representante do Audiovisual. “Não estávamos cientes de quais seriam as alterações. A Comic envolve diretamente o Concult e o decreto traz mudanças muito significativas na estrutura da Comic. Fazê-las sem que o Concult fosse consultado para conversar com a classe artística através de fóruns trouxe um estranhamento.” A classe artística tem se mobilizado diante da publicação do decreto, acrescenta Anna. “Ontem (quarta-feira), começamos a ter respostas da Funalfa. Estamos no processo de escutar a Funalfa. Mas queremos ser escutados também.”
O conselheiro Guilherme Imbroisi, representante da Cultura Popular, reforça que o colegiado não foi consultado pela Funalfa. “O Concult, de maneira geral, só tomou conhecimento da proposta após a publicação do decreto”, pontua. “No meu entendimento, foi uma grande indelicadeza da Funalfa não usar o Concult, que media o contato da sociedade civil com o Poder Público sobre um ato tão importante.” Conforme Guilherme, a crítica não é direcionada às mudanças, até porque entende a necessidade de fazê-las. “Mas não trazer para a discussão do Concult é desempoderar os conselhos. (…) É importante que os agentes culturais e a sociedade civil opinem em uma mudança tão importante. Não utilizamos a ferramenta que tínhamos.”
Fernando Valério, que ocupa a cadeira de Artes Cênicas no Concult, admite a surpresa ao tomar ciência da instituição do decreto. De acordo com Fernando, a diretora-geral da Funalfa, Giane Elisa Sales de Almeida, explicou aos conselheiros durante a reunião da última quarta a necessidade da publicação para garantir a execução do Programa Cultural Murilo Mendes. “Eu, particularmente, entendo a ordem jurídica. Algumas questões foram esclarecidas para mim. Mas, em relação a outras, preciso entender qual a metodologia que será adotada. O que não me faz deixar de acreditar que haverá uma escuta qualificada da Funalfa”, indica.
Questionada pela Tribuna se o decreto foi discutido junto ao Concult antes de ser publicado, a Funalfa, em nota, afirmou que a atribuição de formular decretos é da gestão pública. “Nossa gestão preza muito pela participação da sociedade civil, neste caso, representada pelo Concult. Mas a atribuição de formular decretos é da gestão pública. Esse ano, o decreto não regulamenta os editais do Programa Murilo Mendes. O Concult, como já dissemos, participará das discussões em torno desses editais.”
Funalfa sinaliza R$ 2 milhões, mas valor não está no decreto
Além disso, o decreto publicado pela PJF não especificou qual o valor a ser destinado para viabilizar a execução do Programa Cultural Murilo Mendes. O último instrumento a instituir a Comic – Decreto 13.712/2019 -, por exemplo, havia previsto o montante de R$ 1,5 milhão para executar a Lei Murilo Mendes daquele ano. Conforme os conselheiros, Giane teria sinalizado, na reunião, um orçamento de R$ 2 milhões para o fomento do setor cultural em 2021. O valor foi confirmado pela Funalfa à Tribuna. Contudo, questionam por que o valor não fora discriminado no decreto assinado por Margarida. No entendimento dos conselheiros, a discriminação ao menos garantiria uma espécie de acordo do Executivo sobre o montante a ser executado. “Não saiu no papel. Nos dá insegurança se, de fato, o Município vai cumprir”, aponta o conselheiro Rick Guilhem, representante da Música. “Se (a Funalfa) coloca no papel, é como se o Município assumisse o compromisso de executar os R$ 2 milhões.”
A Funalfa ainda teria indicado a intenção de alocar os recursos em vários editais para que cheguem às periferias, e não apenas um, como até então o Programa Cultural Murilo Mendes foi viabilizado. “Eu concordo com a proposta. Mas, com vários editais, a Prefeitura, por ‘n’ razões, pode não cumprir os R$ 2 milhões. Até porque o Município tem gastos prioritários com educação e saúde, por exemplo. Pode haver a necessidade ao fim do ano de utilizar os recursos em outras áreas.” Rick ainda teme a abertura de precedentes para gestões futuras. “Um governo futuro pode eventualmente vir a assinar um cheque em branco e destinar apenas R$ 100 mil para a cultura.”
O posicionamento é endossado por Anna Onofre. “O decreto não deixa claro como os editais vão funcionar, quantos serão, como vai ser partilhado o dinheiro etc”, questiona a vice-presidente do Concult. “Isso abre precedentes para gestões futuras que não tenham respeito com a cultura fazer o que bem entenderem. Tivemos a notícia de que haverá R$ 2 milhões, mas o valor deveria estar documentado no decreto. É uma grande evolução, de R$ 500 mil em comparação com o edital anterior.” Assim como Rick, Anna destaca que o montante, no fim das contas, pode ser reduzido diante da necessidade de realocação dos recursos em outras áreas. A conselheira ainda alerta para as especificidades de cada área, como a do audiovisual, que representa. “Está vago para o meu setor, principalmente. Fazer filme é muito caro. Há uma preocupação se estão pensando em cada área, o que cada uma precisa para fomentar a cultura na cidade.”
De acordo com a Funalfa, o artigo 5º do Decreto 14.522 dá a possibilidade de vários editais em um mesmo edital. O artigo, aliás, prevê que “cada edital especificará o montante específico a ser destinado, através do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura”. “O que temos como compromisso do programa que venceu as eleições em 2020 é ampliar as possibilidades de democratização da cultura em Juiz de Fora. Pulverizar é uma palavra estranha a nós. Pulverizar não! Pensamos mesmo, como já foi dito antes, em ampliar o acesso. Democratizar. Quando se fala em pulverização, nos dá a impressão de algo sendo destruído. Ao contrário! A intenção é ampliar. É trazer mais rostos e vozes para a fruição do direito à cultura”, pontua a fundação.
Conselheiros acreditam em ‘escuta qualificada’ da Funalfa
Uma eventual distribuição dos recursos em vários editais é a principal preocupação de Fernando Valério, já que o Programa Cultural Murilo Mendes, conforme ele, é oriundo de uma luta histórica da classe e de uma lei que passou a regulamentar uma previsão orçamentária. “Uma das maiores questões é como tal renda será distribuída. A Giane afirmou que há uma preocupação em abrir a possibilidade de execução do programa de outra maneira. Qualquer programa consolidado precisa ser revisado.” O conselheiro acredita que a metodologia de execução será definida a partir de uma escuta qualificada junto à classe artística. “Mesmo que não haja, nós do Concult temos por obrigação exigir que haja a escuta e, a partir disso, entender quais as necessidades para movimentar a cadeia produtiva cultural.”
Assim como os demais, Guilherme Imbroisi entende a proposta de distribuição do montante em vários editais. “Não podemos alimentar um saudosismo de manter o mesmo formato.” Entretanto, reforça o caráter extraoficial do anúncio dos R$ 2 milhões que teria sido feito pela Funalfa, bem como a preocupação com a distribuição conforme as demandas dos setores. “Entendo o posicionamento da Funalfa em direcionar essa verba para as periferias, aonde historicamente não chega. Mas é muito delicada a discussão sobre como vai ser utilizado (o dinheiro), ou seja, quais setores vão ser abrangidos. A Funalfa poderia ter usado a Murilo Mendes como um guarda-chuva para especificar quanto seria destinado a cada setor.” A maneira escolhida, acrescenta o conselheiro, não é a pior nem a melhor. “Como não existe de fato todo o teor da proposta, não conseguimos criticar nem concordar.”
Tanto Anna quanto Rick também destacam como um único edital financiava toda uma cadeia produtiva cultural, desde os proponentes até técnicos de iluminação e som, por exemplo. A preocupação, ressaltam, diz respeito às consequências para esta cadeia diante da eventual “pulverização” do montante. “Um edital de R$ 100 mil pode salvar um artista em meio à pandemia, mas pode afetar o fato de a cultura movimentar uma cadeia de dinheiro. Se pulveriza demais, pode enfraquecer a potencialidade da cultura”, pondera o músico. A diretora de produção de arte aponta um hipotético desmembramento da classe artística. “Todos, independentemente do segmento, pedem e fazem pressão para que a Murilo Mendes seja publicada. O número maior de editais pode fazer com que cada grupo lute pare que o seu edital saia com muito menos força do que antes, o que pode gerar atritos.”
Mandato da Comic passa de dois para quatro anos
Os questionamentos dos integrantes do Concult estendem-se ainda às alterações determinadas pelo Executivo na estrutura da Comic. Ao menos desde 2015, a comissão era instituída sob vigência de dois anos, com mandato de um ano mais a possibilidade de recondução por outro. Porém, o novo decreto estabelece vigência de quatro anos, bem como mandato por igual período dos membros. Inclusive, em fevereiro, de acordo com a ata a que teve acesso a Tribuna, o Concult já havia elegido os dois representantes da comunidade cultural para indicar à Comic – Wenderson Marcelino e Gueminho Bernardes, como titulares, e Sil Andrade e Fabricio Fernandes como suplentes -, como tem direito conforme o regramento. O decreto, por fim, “atropelou” a deliberação do conselho. Os conselheiros ouvidos pela Tribuna ainda buscam entender se há ou não a obrigatoriedade de permanência dos membros na Comic durante os quatro anos, o que não foi especificado pelo Decreto 14.522.
Conforme Rick Guilhem, a vigência bienal garantia uma variação de membros na Comic. “Não sei até que ponto quatro anos de julgamento (das mesmas pessoas) é legal. Os membros que estão ali são o de menos. Acredito muito na idoneidade dessa gestão. Acredito que ela quer fazer proposições que são muito boas para a classe. O problema, novamente, é que abre precedentes. Se amanhã pegamos um governo de extrema-direita, que não é pró-cultura, esses dispositivos podem ser utilizados para prejudicar a classe.” Rick reforça a necessidade de diálogo com o Concult para que se chegue a um consenso. “A própria Funalfa também poderia realizar um estudo de impacto dos editais de fomento publicados pela gestão passada para estruturar os próximos.”
Anna Onofre pondera que o Concult havia elegido os nomes a serem indicados para a Comic. “As pessoas colocadas em fevereiro vão ter que sair, provavelmente. Os quatro anos mudam tudo”, destaca. A vice-presidente destaca que os quatro anos podem levar os curadores a um “engessamento do olhar”. “Seriam quatro anos das mesmas pessoas analisando os projetos, até onde entendi. Será que é justo? Os projetos são amplos e diversos. A gente tem que buscar sempre a diversidade no olhar de quem avalia.” Conforme Anna, a Funalfa explicou que o mandato de quatro anos fortaleceria o próprio Concult, já que, de acordo com o modelo proposto, o colegiado indicaria quatro titulares, além de outros quatro suplentes para a Comic. Anteriormente, eram apenas dois. Os outros dois eram eleitos pelos proponentes com projetos aprovados para a Lei Murilo Mendes. “Não era uma votação ampla, é verdade. Mas, na minha visão, era interessante que houvesse a votação.”
Conforme a Funalfa, tanto a extensão do período de vigência da Concult tanto o aumento de indicações do conselho para a Comic são para fortalecer o colegiado. “Os últimos decretos apresentavam diferentes composições da Comic e de seus mandatos. Nesta edição, a intenção é fortalecer o protagonismo do Concult, na medida em que essa gestão tem uma orientação política de valorização dos espaços, de participação popular e democrática, e conferir celeridade aos processos que envolvem a execução dos recursos do Fundo Municipal de Incentivo à Cultura.”
Pelo fortalecimento do Concult
Guilherme Imbroisi aponta que, conforme o que foi explicado na última reunião, o mandato de quatro anos seria simbólico. “Eventuais avaliações de nomes, mudanças e substituições durante o período ficariam a cargo do Concult. De forma geral, é um período simbólico.” A questão, explica o conselheiro, é que o Concult não se instrumentalizou para discutir justamente tais substituições de membros. “Temos que trabalhar a melhor maneira de gerir os nomes para que, quando for necessário, substituir alguns dos membros. É uma forma de empoderamento do Concult. Ele se torna deliberativo em vez de apenas consultivo.” A tendência é que as diretrizes para as substituições de membros possam ser discutidas durante a revisão do estatuto do conselho.
O entendimento de Fernando Valério é o mesmo que o de Guilherme. “Pelo que foi dito por Giane, os quatro anos de mandato determinados para a Comic não significa que as pessoas têm que ficar por quatro anos. Podem ficar apenas por um”, diz. “Nós do Concult que determinaríamos as diretrizes sobre a Comic, como por quanto tempo as pessoas devem permanecer, como promover outras indicações para substituí-los etc. Durante a reunião, pude perceber que existe uma possibilidade de fortalecimento do Concult, e, consequentemente, da sociedade civil.” A princípio, a ausência do mecanismo de eleição de dois membros da Comic não foi recebida de maneira calorosa, admite Fernando. “Acreditei, em um primeiro momento, que isso diminuiria de certa forma a participação da sociedade civil neste processo. Porém, posteriormente, entendi que o grande objetivo é o fortalecimento do Concult.”