O passeio noturno de Rubem Fonseca: escritor morre aos 94
Nascido em Juiz de Fora e radicado no Rio de Janeiro, Rubem Fonseca sai de cena aos 94 anos após sofrer um infarto
“O pai de José, Alberto, e sua mãe, Julieta, dois imigrantes portugueses, haviam se conhecido no Rio de Janeiro quando Alberto trabalhava no magazine Parc Royal e Julieta em A moda”. O pequeno trecho inicial do livro “José”, de 2011, de autoria de Rubem Fonseca, assemelha-se muito com a história de José Rubem Fonseca, escritor morto no início da tarde desta quarta-feira, 15, no Rio de Janeiro, após um infarto em sua residência, no Leblon. Diferentemente da frase extraída da narrativa, o nome da mãe de José Rubem grafava-se com dois “tês”, Julietta. Ao longo do romance, muitas são as pistas que levam à vida do escritor. Muitos, também, são pequenos blefes.
A informação referente ao seu nascedouro, no entanto, é tratada com boas doses de verossimilhança. O casal se mudara para Juiz de Fora apostando no vigor econômico da cidade, à época reconhecida como a Manchester Mineira. “A família possuía dois automóveis, um excesso numa cidade pequena, ainda mais dispondo de um motorista particular”, conta o narrador, ao que tudo indica, sem blefes. Rubem Fonseca nasceu no número 607 da Rua Floriano Peixoto, na casa que faz a esquina com a Rua Santo Antônio, área nobre do município, destinadas a pessoas de prestígio como Alberto, o português que por anos presidiu a Sociedade Auxiliadora Portuguesa, uma das principais entidades de imigrantes da cidade.
Gerente do Parc Royal em Juiz de Fora, Alberto circulava nas altas rodas locais. “Amigo de nosso povo, vê com olhos de sympathia o progresso de nossa cidade, da qual é também collaborador”, exibiu a edição do dia 11 de setembro de 1923 do jornal O Pharol. Oito anos após seu nascimento, em 1925, o pequeno José Rubem mudou-se com a família para o Rio de Janeiro. Fotografias antigas de Juiz de Fora, anteriores à instalação do restaurante que hoje funciona no endereço onde o escritor nasceu e viveu, registram uma casa de linhas modernistas cujos traços ainda se impõem na atual paisagem e muito distintas do cenário nas décadas de 1920 e 1930. Certamente, a demolição da residência de Rubem Fonseca aconteceu ainda na primeira metade do século XX.
Reconhecido no país e no mundo como um dos principais prosadores da literatura contemporânea brasileira, Rubem Fonseca possui pouca (ou nenhuma) referência ao seu nome em sua cidade natal. Em compensação, guardava em casa sete prêmios Jabuti, o Prêmio Camões, o maior da língua portuguesa, de 2003, e o Machado de Assis, dado pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra, em 2015. “O Rubem Fonseca viveu parcialmente longe dos holofotes, ele não conseguiria constituir sua carreira dessa forma hoje. Por outro lado, acho que nunca deixou de ir às cerimônias dos prêmios que recebeu”, ressalta o escritor e professor da Faculdade de Letras da UFJF Anderson Pires. “Além disso, muitos dos seus contos e romances foram adaptados para a TV e o cinema. Ele era apenas socialmente recluso, mas estava longe da misantropia de um Salinger, por exemplo.”
Uma “onipresença invisível”
Como sua obra, Rubem Fonseca parte sem ter se esgotado. A reclusão, por exemplo, guarda consigo grande mistério. Para a professora da Faculdade de Comunicação Social da UFJF Aline Pereira Andrade, que pesquisou a produção de Rubem Fonseca entre os anos 1962 e 1989 em paralelo com sua trajetória de vida, a atuação extra-literária do autor de “Agosto” e “O caso Morel” pode ajudar a compreender a opção. Então diretor da Light, Rubem Fonseca, aos 40 anos e sem livros publicados, foi convidado a integrar o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, o Ipês, entidade formada por militares da Escola Superior de Guerra e a cúpula do empresariado. “Ele é considerado por parte da historiografia recente como a célula ideológica do golpe de 1964. Era o que chamamos de ‘think tank’, uma espécie de centro de estudos que tinha por objetivo colocar suas ideias, de forma sutil, na sociedade. Defender a democracia, a propriedade privada, dentre outras ideias liberais”, explica Aline.
A estreia de Rubem Fonseca na literatura ocorre em 1963, com “Os prisioneiros”, publicado pela GDR Edições, de Gumercindo Rocha Dória ex- líder integralista e integrante do Ipês, entidade para a qual, apontam algumas pesquisas, Rubem colaborou produzindo roteiros para o setor de propaganda e, mesmo após sua saída, permaneceu contribuindo financeiramente até 1972. Ironicamente, o regime que endossou foi o mesmo que censurou um de seus principais títulos, “Feliz ano novo”, de 1975, mas só lançado em 1989. “Na verdade, o caso dele é parecido em alguma instância (guardadas as devidas proporções) do Nelson Rodrigues. Tinham obras consideradas pornográficas, mas eram caras ‘conservadores’ (Nelson muito mais, nem se compara)”, pontua Aline.
Como muitos de seus personagens, Rubem Fonseca era um homem complexo, dono de muitas facetas, conservador em sua posição política e progressista em sua literatura. E o caso dele, destaca Aline, “é emblemático da própria sociedade brasileira que, em um primeiro momento, clama pela deposição de um governo de esquerda, e depois se vê vítima desse governo que foi colocado, tendo seus filhos torturados, suas obras censuradas”. Intitulada “O verdadeiro Mandrake: Rubem Fonseca e sua onipresença invisível”, a tese de doutorado de Aline, defendida no programa de pós-graduação em história na Universidade Federal Fluminense, tenta elucidar o mistério acerca de um autor que, mesmo sem dar entrevistas desde a década de 1970 conseguiu ter visibilidade até sua morte. “Minha hipótese é que ele se escondeu a vida toda nas personagens. Nenhuma novidade até aí, porque vários escritores fazem isso, mas, no caso dele, isso foi, em grande parte, por conta do envolvimento no Ipês.”
‘Realista feroz’
A melhor porta de entrada para a leitura de Rubem Fonseca, segundo o professor da Faculdade de Letras da UFJF Anderson Pires, são os contos, curtos e impactantes. “Certamente ele foi o inventor do conto policial brasileiro. Não havia nada semelhante antes dele. É claro que a experiência de delegado ajudou. E também a leitura de escritores americanos do gênero ‘hard novel’, como Raymond Chandler. Pessoalmente, se tivesse de recomendar um livro para o iniciante seria ‘Agosto’, que considero sua obra-prima”, sugere sobre o autor que, transfigurando o realismo urbano foi capaz de gerar uma ruptura com a tradição narrativa brasileira. “Talvez o conto de Fonseca que melhor represente essa ruptura seja ‘Intestino grosso’, que dialoga diretamente com a tradição literária para concluir da seguinte forma: ‘Não dá mais para Diadorim’. O narrador do Rubem Fonseca, diante do conflito de classe de onde emerge a violência urbana, não toma partido, é frio, distante e impassível. Um conto como ‘Passeio noturno’ deixa no colo do leitor, como uma granada sem pino, a responsabilidade de elaborar um juízo ético sobre o que acabou de ler. E isso era uma novidade incômoda quando surgiu”, avalia Pires.
O legado do escritor nascido em Juiz de Fora e radicado no Rio de Janeiro, cenário de muitos de seus escritos, está nas prateleiras. Segundo Pires, Rubem Fonseca fez história e influência. “Ele é o pioneiro de um estilo que o Antonio Candido chamava de “realismo feroz”, não apenas por causa do conteúdo violento dos seus contos e romances, mas também por causa da sua linguagem agressiva. Nesse sentido, sua obra antecipa o realismo brutal de autores contemporâneos como Paulo Lins, Ferréz e Ana Paula Maia, nos quais a violência está no cerne do enredo e serve como instrumento de crítica social e análise das relações humanas no espaço urbano das grandes cidades, a corrupção das instituições e o conflito de classes”, aponta o pesquisador e escritor, indicando a imortalidade de José Rubem Fonseca.