Escritora de todas as partes: conheƧa Prisca Agustoni
Desde 2020, a professora da UFJF e escritora lanƧou quatro livros inĆ©ditos no Brasil, conquistando prĆŖmios internacionais e destaques em feiras e eventos
Desde 2020, a professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e escritora Prisca Agustoni lanƧou quatro livros inĆ©ditos no Brasil. āO mundo mutiladoā (2020), “O gosto amargo dos metaisā (2022), āEntre o que brilha e o que ardeā (2022)Ā e “PĆ³lvora” (2022). Um deles, “O gosto amargo dos metais”, ganhou o prĆŖmio Cidade Belo Horizonte e um prĆŖmio suĆƧo de literatura, na versĆ£o āVerso la ruggineā. JĆ” sĆ£o mais de vinte anos em um mergulho literĆ”rio intenso, e que, mais recentemente, fez com que o prĆ³prio processo se tornasse mais claro para ela. AlĆ©m de escrever, Prisca, que Ć© natural da regiĆ£o suĆƧa de Lugano, aproveita as lĆnguas que fala para reescrever e repensar suas obras. Ć um processo delicado e que coloca a escrita como algo que se movimenta constantemente. A possibilidade de se movimentar da mesma forma e ser uma escritora de todas as partes, tambĆ©m faz com que sua literatura chegue longe.Ā
A escritora atribui este momento de diversas publicaƧƵes a uma sĆ©rie de fatores que engloba tanto aspectos pessoais quanto aspectos sĆ³cio-polĆticos. De um lado, ela completa quinze anos como professora efetiva da universidade, jĆ” tendo mais estabilidade no mundo acadĆŖmico e uma familiaridade com o ritmo de produĆ§Ć£o exigido nesse aspecto. Seus filhos, hoje com 17 anos e 9 anos, tambĆ©m demandam menos de seu tempo e passam a ter uma autonomia diferente de anos atrĆ”s. Por outro lado, hĆ” um amadurecimento evidente, que deixa marcas sobre a sua escrita. “Ć claro que Ć medida em que avanƧamos nos tornamos mais autocrĆticos, mas tambĆ©m ficamos mais cientes da escrita e dos tempos. SĆ³ que sem dĆŗvida hĆ” uma urgĆŖncia maior de falar, de escrever”, destaca.Ā
Com o passar dos anos em terras brasileiras, Prisca tambĆ©m se aprofundou e viveu a cultura brasileira tĆ£o intimamente que passou a sentir a vontade de contribuir com o que tinha a oferecer, bebendo de tantas fontes. “Tenho esse desejo de ser parte de uma histĆ³ria que me molda. Ć um motor muito importante, que me leva a novos projetos, ideias e desafios”, explica. Ela ainda relata que os acontecimentos polĆticos do Brasil, que tornaram por tantas vezes as condiƧƵes de vida mais difĆceis e colocaram em xeque tambĆ©m o ser imigrante no paĆs, fizeram com que ela tivesse uma reaĆ§Ć£o paradoxal. As preocupaƧƵes sociais, como conta, sempre estiveram presentes em sua vida e trabalho, inclusive acadĆŖmico, mas acredita que tinha um certo receio ou pudor de falar a respeito para evitar um olhar superficial ou clichĆŖ. O momento de virada, entĆ£o, foi quando tudo comeƧou a atravessĆ”-la mais profundamente. “Ao invĆ©s de me sentir expulsa e abandonada, me senti envolvida. Senti que era parte disso e com vontade de lutar por uma sociedade melhor, de reconstruir. A literatura Ć© fundamental para a construĆ§Ć£o da memĆ³ria e, por que nĆ£o, da alegria”, reflete.
Foi assim que “O mundo mutilado” veio ao mundo, em 2020. Ela comeƧou a escrever a obra em 2017, quando participou da Festa LiterĆ”ria Internacional de Paraty, montando, a convite de Joselia Aguiar, uma pequena performance dentro do que ela chamava de “os momentos de fruto estranho”. Trouxe uma sĆ©rie de poemas em vĆ”rias lĆnguas, alguns deles em portuguĆŖs, que eram poemas novos. “Esse pequeno nĆŗcleo inicial dos poemas jĆ” estava voltado para a questĆ£o da migraĆ§Ć£o, porque era uma temĆ”tica que me atravessa, como sujeito feminino que migrou,Ā e tambĆ©m como filha da minha Ć©poca. Assisto com consternaĆ§Ć£o e com espanto o ĆŖxodo que se dĆ” atravĆ©s do mediterrĆ¢neo”, diz.Ā Para ela, Ć© o sentimento de estar agarrada Ć vida que deu impulso para escrever sobre esse fato e tambĆ©m sobre o eco-crime de Mariana e Brumadinho, relatado na obra que foi premiada no Brasil e na SuĆƧa. “Ć um movimento que me levou Ć palavra poĆ©tica. Ć uma tentativa de cavar, desde dentro dessa multidĆ£o de resĆduos, de restos, de cadĆ”veres inclusive da natureza, de tirar esse monte de lama e ver o que podemos encontrar ali, ainda de humano, e que possa comover.”Ā
Autora que transita
“PĆ³lvora”, lanƧado no final de 2022, por sua vez, Ć© um livro que ela conta carregar na cabeƧa hĆ” muito tempo, mas sĆ³ entĆ£o conseguiu finalizar. “Ele nĆ£o nasce de uma revolta em prol da comoĆ§Ć£o, mas dĆ” vontade de dar voz a um sujeito feminino, a uma poĆ©tica que colocasse na cena, diante dos olhos dos espectadores, a potĆŖncia da voz feminina. Uma voz feminina que secularmente foi calada, muitas vezes suicidada pelo cĆ¢none”, explica. Tratou-se, para ela, de fazer isso de uma forma que o foco nĆ£o passasse atravĆ©s do corpo, mas atravĆ©s do mundo imaginĆ”rio e do simbĆ³lico. JĆ” o “Entre o que brilha e o que arde” foi totalmente gestado na pandemia, no momento em que a populaĆ§Ć£o se encontrava impedida de sair e de ter outras fontes de alimentos de cultura. A relaĆ§Ć£o com as artes plĆ”sticas sempre foi muito forte em sua vida e, durante esse percurso, acompanhou os movimentos e os artistas. “Escrevi a partir de imagens e artistas que estavam me tocando muito, e escrevi vĆ”rios poemas inspirados em artistas, dialogando com artistas”, explica.Ā
O fato de ser uma autora que transita, em sua visĆ£o, permite que tenha acesso maior a espaƧos mĆŗltiplos e possa ver movimentos culturais acontecendo. “No Brasil, nos Ćŗltimos anos, tem tido um florescimento de feiras, eventos e publicaƧƵes, inclusive para mulheres, e isso tem possibilitado um diĆ”logo mais intenso. Vejo que o panorama em relaĆ§Ć£o Ć inserĆ§Ć£o das mulheresĀ mudou radicalmente nos Ćŗltimos 5/10 anos”, explica. Para ela, isso significa, alĆ©m de se alegrar com os prĆŖmios e com as portas que estĆ£o sendo abertas, a possibilidade de um olhar mais aprofundado para a literatura que estĆ” no dia a dia da escrita, no que chama de “embate com as questƵes que nos atravessam e nos perturbam”.Ā
VĆ”rias lĆnguas e mĆŗltiplos sentidos
O seu projeto pessoal de escrita e recriaĆ§Ć£o, que jĆ” leva adiante hĆ” anos, tomou mais corpo e densidade na medida que ela entendia que se tratava de algo muito mais orgĆ¢nico e interligado. “Eu passei a viver essa multiplicidade de lĆnguas e de personalidades literĆ”rias menos como algo separado, estanque, e mais como um conjunto orgĆ¢nico que Ć© a minha obra como um todo”, diz. Trabalhar com vĆ”rias lĆnguas Ć© uma prĆ”tica que Prisca integrou ao seu processo criativo e se tornou como um diferencial. “Quando escrevo em italiano ou em portuguĆŖs, jĆ” sei que disso virĆ” uma nova versĆ£o, uma recriaĆ§Ć£o em outra lĆngua. Vira um canteiro de obras infinito e gosto que nĆ£o leve como objetivo final uma obra pronta, finita. Eu acredito muito na obra como um processo constante de produĆ§Ć£o. As vĆ”rias interferĆŖncias entre as lĆnguas muitas vezes fazem com que eu mexa nas versƵes”, detalha, sobre esse processo.
Embora isso aconteƧa de forma muito natural, Prisca admite algo de caĆ³tico no processo. Mas o caminho faz com que chegue ao resultado. “A obra Ć© esse movimento orgĆ¢nico, quase que tem vida prĆ³pria, e eu tenho que puxar as rĆ©deas, de vez em quando, porque essa sou eu. Eu sou uma pessoa que fala em portuguĆŖs, ama em portuguĆŖs, e que, enquanto estĆ” escrevendo, lĆŖ uma obra de poemas em italiano e pensa em uma palestra que vai fazer em Genebra”, conta. Nessa dimensĆ£o, nĆ£o existe uma sĆ³ lĆngua, literatura ou Prisca: “SĆ£o vĆ”rias camadas e vĆ”rias facetas do meu ser, da minha pessoa no mundo, da minha forma de me inquietar com a vida que estĆ” fora de mim, da vida concreta, polĆtica, social”. Mas tambĆ©m algo que, no final, cria uma unidade que permeia a vida toda. “Ć tambĆ©m claramente um diĆ”logo constante com o meu interior, de como eu, sujeito, me sinto deslocada diante de determinados acontecimentos e como isso reflete tambĆ©m na linguagem”.