Poço Rico: O que representa o processo de tombamento de um conjunto de casas?
Prefeitura recebe seis pedidos de impugnação, representando mais de 30 dos 50 imóveis notificados sobre possível tombamento do conjunto paisagístico
Numa casa, os reflexos de um forte impacto é percebido com o tempo. Rachaduras que surgem mais tarde. Barulhos, rangidos, empenas que aparecem quando já restava esquecido o choque que os ocasionou. Para os moradores notificados pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (Comppac) da possibilidade de tombamento do que seria o conjunto paisagístico urbano do Poço Rico, o impacto do processo tornado público em outubro tem sido sentido dia após dia. Tanto para os contrários quanto para os favoráveis, a proposta inédita que tombou provisoriamente 50 imóveis no bairro não deixa incólume seus envolvidos. Estendido o prazo para a inscrição dos pedidos de impugnação, 20 dias a mais do que os 30 legais após a notificação, o processo reúne, agora, seis novos documentos. Além de um pedido coletivo, representando 31 dos 50 imóveis, o conselho recebeu um pedido representando duas edificações e outras quatro manifestações individuais.
“Muitos proprietários nos procuraram pedindo para estender esse prazo, e entendemos que esse caso é atípico, mas não vira regra para outras notificações. Nesse caso, trata-se de um conjunto extenso de casas”, justifica o presidente do Comppac, o superintendente da Funalfa Rômulo Veiga, apontando para a excepcionalidade que caracteriza o processo. “A impugnação não gera resposta, ela entra como representação do contraditório. A partir de agora, os arquitetos e historiadores da Divisão de Patrimônio vão investigar o processo, que entra numa fila, porque já existem outros em instrução histórica e arquitetônica. Quando chegar a vez do Poço Rico, esses profissionais vão se debruçar sobre os valores imateriais e simbólicos, além dos históricos da região, que sabemos ser operária, com início das atividades do Pantaleone Arcuri, figura representativa na arquitetura do município”, explica.
Há três dias da audiência pública que irá discutir a situação, no próximo dia 13, às 15h, na Câmara Municipal, os muitos lados de uma polêmica e complexa questão se encontram. Mobilizados nas redes sociais, os proprietários que se sentem, sobretudo, lesados com o tombamento empenham-se em conquistar visibilidade para o movimento chamado SOS Bairro Poço Rico. Uma das publicações virtuais do grupo, na qual constam críticas à falta de estudo de impacto do processo, já alcançou cerca de 50 mil visualizações. Além dos proprietários, gestores públicos, pesquisadores, integrantes do conselho e até mesmo o promotor de justiça responsável pela área foram convidados para a sessão na casa do Poder Legislativo.
Aumento do trabalho de uma reduzida equipe
Desde 1983, quando foi tombado o primeiro imóvel em Juiz de Fora – o prédio da atual Câmara Municipal, no Parque Halfeld -, a cidade contabiliza 186 bens imóveis preservados por lei pelo município. O último é a residência de número 3.103, na Avenida Rio Branco, próxima da esquina com a Rua Delfim Moreira, cujo decreto de tombamento foi publicado no Atos do Governo em 13 de setembro desse ano. O tombamento – ainda provisório – no Poço Rico representa, portanto, um acréscimo de mais de um quarto dos bens, 26,8% de imóveis, quantidade superlativa para uma pasta já bastante enxuta. Na estrutura atual da Divisão de Patrimônio (Dipac), que investiga os imóveis e suas alterações, trabalham somente dois arquitetos e dois historiadores. O grupo de trabalho amplia com a atuação de três estagiários em cada área. “Deveria ser mais”, reconhece o superintendente.
Considerando que, em condições ideais, cada profissional leva em média um mês para levantar os dados sobre cada imóvel, o processo no Poço Rico levaria, no mínimo, dois anos até ter a fase de estudos concluída, o que aponta, no entanto, para a necessidade de mecanismos que confiram celeridade. “Nesse caso, imagino que vamos precisar de criar uma metodologia própria, porque não vai ter como pegar a história de casa a casa, mas a relação de uma com a outra, se o estilo é harmônico com o outro. Temos casas de colonos e outras extremamente alteradas. Vamos criar um regramento mínimo para entender quais casas merecem o tombamento. Esses arquitetos e historiadores vão gerar um parecer técnico, sem emitir opiniões. Depois disso, eu, como presidente do conselho, vou eleger um relator, e minha escolha vai à votação. Esse relator vai ler e emitir opinião. Em seguida, a gente vota o relato dele”, comenta Veiga, afirmando ser, o caso, prioridade na divisão.
Caso seja aprovado pelo conselho o tombamento, a decisão se torna um decreto, que pode ser aceito ou rejeitado pelo prefeito. Caso não sancione, o processo retorna ao Comppac. Caso não seja tombada, após um ano, uma nova solicitação pode ser feita, e todo o processo, recomeçado. Durante todo o período de tramitação do processo, as casas permanecem sob tutela compartilhada com o Poder Público. “O proprietário perde a autonomia. Qualquer alteração que ele faça precisa ser submetida antes ao Comppac. No caso de identificar que a alteração é complexa, o conselho solicita ao Dipac a investigação”, explica o presidente do conselho, reconhecendo contrassensos presentes no processo, como a inclusão de uma casa de projeto modernista já completamente modificada e em visível dissonância com o restante do conjunto.
“O tombamento é uma das raras políticas universalizadas. O que rege isso no Brasil é a Constituição, que delegou o poder a qualquer cidadão solicitar, fiscalizar e denunciar falta de zelo com prédios tombados. Não acho que o problema está na lei. Empoderar o cidadão é uma convergência das políticas brasileiras e é ponto pacífico de que é positivo. O problema é quando o cidadão não tem responsabilidade com o poder que é dado a ele, causando restrições a outras pessoas. Nesse caso, o importante é que quem se interessa em solicitar o tombamento que o faça com cuidado, participando o proprietário. Da maneira como acontece hoje, pelo tema ser um tabu, tudo é feito nas sombras”, comenta Rômulo Veiga.
Urgência de políticas públicas
Sob os holofotes dos debates, estão a deterioração do bairro e a potência dos moradores, vetores que junto do Poder Público poderiam promover um cenário diverso. A apartação dos proprietários, inclusive, distancia sobremaneira a experiência juiz-forana da belo-horizontina, que tombou em 2015 cerca de 300 imóveis, entre casas, igrejas, restaurantes, bares e praças no histórico Bairro Santa Tereza. Exemplar no que tange a preservação de conjuntos urbanos no país, o caso partiu do próprio desejo dos moradores, reunidos no Movimento Salve Santa Tereza. “Não significa que todos foram a favor, pois numa grande cidade sempre haverá posições dissonantes, mas a maioria quis e continua a tentar preservar o bairro, até porque o tombamento, ao contrário do que muitos dizem, não congela o bairro. As mudanças de moradores e de usos continuam a ocorrer, assim como as ameaças”, pontua Luciana Teixeira de Andrade, socióloga e professora do Departamento de Ciências Sociais e do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas.
Segundo a pesquisadora, o distanciamento da comunidade tem um impacto negativo sobre o patrimônio. “O ideal é que os moradores entendam que a preservação traz benefícios. Em alguns casos, são eles mesmos que demandam a preservação. As políticas urbanas no Brasil são muito permissivas em relação às mudanças nos bairros, ocasionando perdas da qualidade de vida, na memória do bairro e nas relações de vizinhança. A preservação pode ser, e em muitos casos é assim que ocorre, uma forma para que um grupo continue a viver naquele espaço conservando seus modos de vida”, defende Luciana.
“O discurso dos moradores deve ser ouvido com muito cuidado e atenção, afinal são eles que vivenciam o dia a dia do bairro, o cotidiano das relações entre pessoas, entre o espaço privado das casas e o espaço público das ruas, praças etc. Mas não se deve deixar de lado o discurso de quem pesquisa, de quem trabalha as questões urbanas e traz exemplos bons e ruins de modelos de gestão urbana”, pondera a historiadora e mestra em ambiente construído e patrimônio sustentável Maria Leticia Silva Ticle. “Por isso o diálogo deve ser constante, deve haver reuniões públicas, palestras e cursos, mostras culturais a respeito do tema, enfim, deve ser exercido o direito de acesso à informação de todos”, acrescenta.
Intitulado “Cidade e patrimônio: o tombamento na percepção dos proprietários de imóveis em Belo Horizonte”, o estudo de Luciana, em parceria com o também pesquisador Tarcísio Botelho, aponta para a forma de comunicação dos tombamentos, meios para o incentivo e falta de divulgação dos mesmos como as principais queixas dos proprietários em relação ao processo. De acordo com o trabalho, alguns moradores sequer sabiam da preservação quando questionados pelos estudiosos. “Resta alertar para a necessidade de o Poder Público local estar atento à recepção e à reação às práticas de proteção, por parte dos proprietários dos imóveis afetados, que podem ser os fatores decisivos para a adoção e a manutenção desse tipo de política pública”, observa o estudo, fruto do projeto “Memórias em conflito: Patrimônio histórico e monumentalização da memória no município de Belo Horizonte”.
Considerando o termo “revitalização” como se inscreve no dicionário – dar nova vida -, Maria Letícia reflete sobre o ideal de um processo de preservação. A ideia de “revitalização” proporciona a gentrificação, a supervalorização de uma área e a expulsão de sua comunidade original, que se vê sem condições de se manter ali pelos altos custos. “Dependendo da maneira como o tombamento é levado adiante, ele pode contribuir para esse processo, e aí o que deveria ser o resgate de condições de vida mais digna, sem precisar se afastar do lugar onde sempre viveu, acaba por afastar aquelas pessoas dali. O tombamento sozinho nem gentrifica e nem resgata a real qualidade de vida. É preciso que se tenha o interesse em levar adiante um projeto ou outro”, destaca, ressaltando a importância de um processo transdisciplinar, capaz de “ouvir diferentes vozes”. “Um planejamento urbano que quer preservar a memória da cidade dá uso aos seus bens arquitetônicos preservados, otimiza o transporte público, a vida a pé, valoriza o patrimônio que está à margem da mesma forma que valoriza o centro.”
Preservação democrática
Fundamentalmente originário de uma vila operária, o Bairro Poço Rico preserva em suas casas a história dos trabalhadores, personagens comumente “invisíveis” nas histórias dos “eleitos”. Nesse sentido, o processo de tombamento alinha-se com a evolução das legislações patrimoniais no país. Segundo a conselheira de patrimônio cultural e sócia-correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil Maria Cecília Londres da Fonseca, o reconhecimento do Poder Público da necessidade de conservação dos saberes e fazeres, bastante recente no país, demonstra o interesse por uma preservação democrática.
“Dado os tipos de bens que eram selecionados para tombamentos, referentes sobretudo ao período colonial, com especial valorização do estilo barroco mineiro, a atuação do SPHAN (hoje IPHAN) era considerada ‘elitista’, pois apenas a memória dos grupos mais privilegiados da sociedade brasileira era protegida. Com a ampliação do entendimento do que seria o patrimônio cultural brasileiro, e com a inclusão da noção de patrimônio imaterial, inúmeros outros grupos sociais passaram a poder reivindicar não apenas o ‘direito à memória’, como também o direito a terem condições para manter vivas suas manifestações culturais a o reconhecimento de sua propriedade coletiva sobre elas”, analisa.
Avanço ou estagnação na reflexão patrimonial
Enquanto as políticas acerca do patrimônio material veem a principal instituição da área, o Iphan, completar 80 anos em 2017, a noção imaterial é recente, indicando o desenvolvimento das discussões do assunto. Para Maria Cecília, há motivos para comemorar, mas “também desafios a serem enfrentados, como uma maior integração dessas duas vertentes do patrimônio – material e imaterial – no âmbito do Iphan e também uma articulação entre as políticas federal, estadual e municipal de patrimônio cultural. Além disso, fica cada vez mais evidente que a questão do patrimônio cultural é transversal em relação a outras políticas públicas, como as de educação e meio ambiente, inclusive porque atualmente o Iphan participa dos processos de licenciamento ambiental.”
Promotora de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul, Ana Maria Moreira Marchesan aponta para distorções presentes nas legislações federais e, consequentemente, nos textos estaduais e municipais. “Avalio que a legislação diz menos do que deveria. Há muitos técnicos que entendem que o decreto-lei n º 25 (lei do tombamento) se satisfaz, não precisaria ser complementado, mas eu acho que em função da segurança jurídica seria melhor termos alguns critérios mínimos predefinidos, sobretudo em relação ao entorno. Nós não trabalhamos com uma distância mínima como em outros países. Seria interessante que houvesse um raio mínimo de entorno de qualquer bem tombado. Se os órgãos responsáveis pelo tombamento entendessem que aquela distância não é suficiente (para um prédio específico), poderia, então, haver uma portaria ampliando a zona de entorno”, comenta.
“Existem duas interpretações acerca do conceito. Uma ambiental, mais atualizada. E outra meramente óptica, que se atém na literalidade do decreto-lei n º 25. A interpretação ambiental trata a zona de entorno como envoltória, que objetiva trazer maior coerência entre o bem tombado e tudo o que o envolve. Poderíamos trabalhar com a ideia de perspectiva, de coerência arquitetônica, cores e mais uma série de questões”, diz a promotora e pesquisadora. “Já o critério óptico se apega ao artigo que diz que ‘sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto’. Ou seja, nesse caso só estaria afetando o bem tombado o que impede ou reduz sua visibilidade. É um critério muito restrito, literal e obtuso”, acrescenta.
Em Juiz de Fora, a questão do entorno, inclusive, tem sido ponto principal no debate que cerca o Poço Rico. O prédio de 11 pavimentos e 80 apartamentos, cuja aprovação para a construção se deu antes do processo de notificação dos moradores, mostra-se como uma das principais contradições no desejo de conservar a região. Segundo o analista de sistemas e músico Ricardo Capra Pereira, um dos proprietários que integram o movimento SOS Bairro Poço Rico, a intenção do grupo é, além de judicializar o processo, embargar a obra, ainda que sejam favoráveis à edificação. De acordo com Capra, o intuito é pontuar o paradoxo criado no entorno dos bens tombados provisoriamente.
“Não vejo evoluções (na legislação). Em Porto Alegre, pelo contrário, vivemos retrocessos. Nos gabávamos de ser uma das únicas cidades do Brasil com uma lei do inventário, e essa lei foi, recentemente, revogada pela Câmara Municipal e aguarda o Prefeito sancionar ou vetar”, critica a promotora Ana Maria, referindo-se a uma das mais recentes polêmicas acerca do patrimônio no Brasil. Revogada no primeiro dia de dezembro pela Câmara de Vereadores, a lei sobre o Inventário do Patrimônio Cultural de Bens Imóveis da capital gaúcha – que impõe limites para alteração, demolição ou reforma dos imóveis que constam numa lista -, aguarda até o dia 15 a sanção ou veto do prefeito Nelson Marchezan Júnior, até agora em silêncio diante do impasse, no qual a maioria das associações de moradores faz coro contrário à preservação. “No Brasil não se dá o devido valor ao patrimônio cultural”, resume Ana Maria, referindo-se aos muitos lados de uma discussão, que, de canto a canto do país, parece bastante distante de estar pacificada.