Série “Terra de Vera Cruz”, de Eliardo França, volta a ser exposta
Prestes a completar 20 anos, mostra que inclui 10 quadros chama atenção para atualidade do ódio que retrata
Quatro dias depois de terem chegado a uma terra desconhecida, os homens que ocupavam as 13 caravelas lideradas por Pedro Álvares Cabral decidiram celebrar uma missa. Duzentos e sessenta anos depois, o pintor Victor Meireles retratou o momento com as tintas do colonizador, colocando portugueses ao centro, sob a luz, e os índios, o povo nativo, nas bordas, sob as sombras. Enquanto a organização é destacada no centro, onde estão estrangeiros pacíficos, cordiais e elegantes, ao redor Meireles inseriu figuras primitivas, selvagens em árvores.
Naquela Terra de Vera Cruz, havia a água com açúcar que Eliardo França rejeitou ao pintar o descobrimento com a violência própria do momento. Novamente exposta, no Memorial da República Presidente Itamar Franco, a série do mineiro de Santos Dumont radicado em Juiz de Fora mantém-se atual, mesmo após quase duas décadas desde sua primeira exibição, no Espaço Cultural dos Correios, no Centro do Rio de Janeiro.
“Por volta de 1996 e 1997, comecei a pensar em criar algum trabalho contando a história da chegada dos portugueses no Brasil. Comecei a pesquisar e cheguei à conclusão de que não era um livro, mas quadros em grande formato que pudessem ficar em local público. Acabei realizando esse projeto quando a UFJF comprou essa série, depois de já ter feito a exposição em vários lugares, em Salvador, Tiradentes, Porto Alegre, Belo Horizonte e Juiz de Fora”, recorda-se o autor, aclamado por obras como a série infantil “Os pingos”, realizada em parceria com a esposa, a escritora Mary França.
Em cores quentes, como um vermelho tão vivo quanto sangue, os dez quadros de “Terra de Vera Cruz” (a atual mostra expõe nove das dez telas) evidenciam uma violência que a história oficial tratou de suavizar, e que, hoje, filósofos e historiadores trazem à cena para discutir o ódio nosso de cada dia. “Não podia colocar água com açúcar. O que aconteceu, na verdade, foi uma tragédia. Imagina que eles não conheciam nada. É como se um disco voador chegasse no quintal de sua casa. O encontro é assustador. Quando surgiram as caravelas no horizonte, os índios não imaginavam do que se tratava. Sequer fazia parte da imaginação deles”, observa Eliardo.
O homem branco que escraviza e que dizima duela com o homem vermelho que resiste e que revolta. “Foi um encontro violento, não é ficção”, comenta o pintor, logo citando a violência expressa mesmo na sublinha da carta de Pero Vaz de Caminha. Na narrativa criada por Eliardo, a opressão serve como linha condutora das relações que se estabeleceram desde o momento indicado como “descobrimento”. A pincelada vigorosa e a paleta servem ao discurso e também se enquadram como elemento a reforçar o universo de intensa energia. “Realizei entre seis e oito meses. Foi um trabalho diário e muito extenuante, porque além da pesquisa teve o esforço físico, de lidar com grandes formatos, de fazer e refazer os estudos”, lembra o artista.
História de violência
Em tempos de ódio a transbordar das redes e de insegurança generalizada, “Terra de Vera Cruz” também merece ser lida como alegoria do presente. “O homem é o homem e nunca deixou de ser violento. Desde a pré-história vive embates. Hoje basta ligar a TV e ver o que rola no Oriente Médio e em muitos outros lugares. O homem é um bicho muito perigoso. Politicamente, a chegada dos portugueses, essa visita inesperada, buscava lucro”, pontua Eliardo, apontando para a atualidade de quadros que revelam processos ainda recorrentes no país. Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda escreve sobre a chegada dos portugueses: “Se o julgarmos conforme os critérios morais e políticos hoje dominantes, nele encontraremos muitas e sérias falhas.”
Expoente máximo de um emergente grupo de filósofos pop, Leandro Karnal defende em seu recém-lançado “Todos contra todos – O ódio nosso de cada dia” (Editora Leya) que o pacifismo do brasileiro, propalado por diferentes teóricos, faz pouco sentido quando observada a história desde o “descobrimento” até a atualidade de textos raivosos publicados anonimamente nas redes sociais. “O quadro pintado é idílico. Somos uma terra sem terremotos e furacões. Sem guerras civis nem fundamentalismos extremados que levam a genocídios. Somos pacíficos. Não violentos. Não somos agressivos. Não odiamos. Não somos preconceituosos. Não somos racistas. Esse quadro não resiste ao teste da história. É uma de nossas ilusões, criada e sustentada ao longo de séculos. Para começo de conversa, tivemos durante a nossa história dezenas de guerras civis, a diferença é que nunca usamos essa expressão para defini-las”, escreve o professor da faculdade de história da Universidade Estadual de Campinas.
Escrevendo passado e se inscrevendo no presente
A atualidade impressa no trabalho realizado na década de 1990 corresponde à atualidade que perseguem Eliardo e Mary França, atuantes sujeitos das artes. Cheio de fôlego, o casal que acaba de lançar um clube do livro voltado para os pequenos – no qual os pais assinam pacotes e recebem em casa, mensalmente, algumas das mais de 300 histórias criadas pelos dois – continua a todo vapor lançando novos títulos. “Estamos fazendo vários livros para uma editora de Passo Fundo, a Tribo, que tem bastante interesse pelo nosso trabalho, além das coleções da Editora Ártica e da Global. Livros vamos fazer sempre”, comenta Eliardo, às voltas, também, com sua produção plástica. “Estou preparando uma exposição de aquarelas para a Suíça, em outubro. Não tem temática, são temas que me surgiram no momento. A temática é a técnica”, acrescenta.
Cada vez mais envolvido com as redes sociais, o casal também ganhou canal no YouTube, para onde Mary tem gravado vídeos sobre o universo da educação infantil. “Também planejamos uns filmetes curtos para a internet. Faz parte do momento. Estamos numa era digital, e é importante participar do momento”, diverte-se o ilustrador, num entusiasmo profissional que já dura mais de cinco décadas. Na verdade, para ele, dura os seus 76 anos de estrada. “O artista já nasce aposentado. Brinco que me aposentei em 1941 e de lá para cá só fico brincando.”