Fatima Daas visita JF e fala sobre seu livro ‘A última filha’
Escritora francesa desafia os padrões do que se espera dela, desde o pseudônimo escolhido, e explora múltiplas identidades em romance de estreia
A escritora francesa Fatima Daas esteve em Juiz de Fora, na última quarta-feira (7), para conversar com leitores sobre seu livro “A última filha”. Foi uma ação fruto de uma parceria entre a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), a embaixada francesa no Brasil, a Aliança Francesa e a UFJF. A obra está sendo amplamente debatida desde que foi lançada, em 2020, por misturar ficção e elementos autobiográficos para falar sobre suas múltiplas identidades. Como uma mulher imigrante, periférica, muçulmana e lésbica, ela pretende desafiar os padrões do que se espera dela desde o pseudônimo escolhido – Fatima, na tradição islamica, é um nome de grande importância por ter sido escolhido para a filha caçula de Maomé. Em seu romance de estreia, a incapacidade de honrar o nome ao mesmo tempo em que descobre a sua identidade guia o leitor pela vida da personagem.
A partir dos conflitos que ela mesma sentiu, o livro começou a ser escrito em 2018, em um movimento de conexão com ela mesma. “Antes dele, me sentia muito distante. Sentia que esse texto tinha uma urgência, uma história que nunca tinha contado e que precisava contar”, afirma. Começou a escrever, então, pela tensão da homossexualidade e o islã, e aos poucos passou a sentir a necessidade de não falar só isso, mas da própria tensão de estar procurando um lugar de pertencimento. As ideias continuaram surgindo e demandando que ela prosseguisse em capítulos curtos, quase em versos. O ritmo lembra o do rap, de que ela tanto gosta. “Em seguida, senti que precisava escrever sobre como era crescer na periferia de Paris. Depois, de falar sobre como é ser asmática, de sentir essa sensação de sufocamento. Quis falar como era a vida na escola, de querer ser uma boa aluna. Senti vontade de falar da Argélia, de ser filha de imigrantes, da vida em Paris, dos amores, da amizade e da família”, conta.
Em cada capítulo, como explica, há “uma nova personagem e uma nova perspectiva da Fatima”. Os elementos autobiográficos e ficcionais se misturam, em uma escrita que não segue a linearidade, mas que funciona como um confessionário. Muitas vezes, Fatima confessa que escreveu com raiva do que contava – sem conseguir se livrar da vergonha e do ódio por certas etapas e coisas pelas quais passou. Pelas caixas nas quais sempre tentam enquadrá-la. “Queria encontrar um lugar na sociedade, e isso me levou a escrever. Há o lugar que nos é dado, o que querem que a gente ocupe e o que a gente quer ocupar. E também tem esse lugar que fui descobrindo na literatura, em que me sentia à vontade e em casa, e consegui esse espaço para falar da minha intimidade e daquilo que eu vivi e não conseguia expressar”, afirma. Mesmo assim, a raiva não passou.
“Quando escrevo, sempre sinto raiva”, continua Fatima. Isso faz com que ela entenda, inclusive, o quão cansativo e doloroso é se sentir assim. Tenta, então, que seu texto não use dessa raiva bruta, e que contenha uma delicadeza que, afinal, a autora também sente ao conseguir o espaço que tem para refletir sobre quem é. Em relação ao que as histórias não curam, ela não se preocupa em fingir o contrário, mas apenas em registrar sua existência: “O movimento de colocar as experiências em palavra não conserta as coisas, mas liberta. De alguma forma, diria que escrever me deixa menos louca, porque escrevendo sobre essas questões, elas já não podem agir comigo como se eu não existisse ou não pudesse ser”.
Várias faces de Fatima
Desde o primeiro texto que a autora escreveu, surgiu com ela a personagem Fatima. Foi uma forma, também, de falar de questões íntimas sem expor demais partes da sua vida e, ao mesmo tempo, conseguir apresentar os dilemas que já sentiu através da personagem. “Minha editora disse: ‘Por quê? Você não quer falar do seu livro na rádio, para as mídias? Você quer ficar nas sombras?’ E eu disse que não, que precisava falar desse livro, explicá-lo, mas através da procura de uma identidade que eu pudesse encarnar. (…)”, reflete. Os leitores sempre a questionam sobre o quanto do livro contém da personagem e o quanto fala diretamente da autora e, de acordo com ela, isso varia.” Há muitas coisas semelhantes, não tanto na verdade dos fatos contados, mas no que sentimos”, revela. Como ela explica, a vergonha, o amor, a raiva e a solidão que a personagem tem estão vindo dela.
Os capítulos da obra sempre se iniciam com a afirmação “Eu me chamo Fatima”, seguida de informações sobre a narradora que vão sendo reveladas ao longo da história. Em alguns capítulos, o sobrenome Daas aparece, em outros não. “Pra mim, a repetição do sobrenome é uma forma de marcar a presença dessa família. Também teve a questão da sonoridade, e a questão da busca do nome e da reapropriação do nome que foi dado para a família. Mas, no final, esse sobrenome vai sumindo e se diluindo, como se fosse se libertando do que foi dado”, conta.
Recepção pelo mundo
Por tocar em temas sensíveis, “A última filha” passou por recepções bastante diferentes. “Não sabia que meu livro tocaria tanto, e nem que assustaria tanto, que seria visto como um perigo. Me tocou ver como um livro tão íntimo, que falava de mim mesma, também conseguiu tocar muito outras pessoas”, diz. Ao longo do processo de lançamento, a maior surpresa foi ver que a personagem atingia as pessoas em lugares tão sensíveis quanto acontecia com ela mesma. As reações variaram: uma aluna de Ensino Médio contou a ela que deu o livro pro pai e que desde então a relação deles estava melhorando; ao mesmo tempo, uma mãe católica disse que a filha era lésbica e que não queria que a filha fosse assim. “No final do evento em que estava, ela comprou meu livro e disse: ‘O que posso fazer?’”. Senti como uma espécie de aceitação”, reflete.
Há também parte da crítica que se dirigiu diretamente à autora, apontando uma incompatibilidade entre ser lésbica e ser muçulmana. Para a autora, isso reforçou que ela precisava mostrar como se sentia, também com as contradições que percebe haver internamente e sobre as expectativas que recaem sobre a sua identidade.
A própria escrita foi alterada nos últimos cinco anos em que a autora esteve voltada para o livro, o lançamento e a sua divulgação. “Por um lado, diria que nada mudou. O momento da escrita continua sendo eu e o texto. Tenho a impressão que consigo preservar essa coisa íntima, sem pensar nos outros ou na recepção, focando no que quero contar e na maneira que quero, com o ritmo que quero, as cores e os cheiros”, diz. No momento, conta que está se voltando para outra obra, e continua buscando elementos autobiográficos. E já espera por novas trocas: “Depois da escrita, tem o momento da partilha, mas para essa partilha acontecer e eu ser sincera com os outros, preciso ter o meu momento”.