Aos 84 anos, Eliardo França reflete sobre perdas, recomeços e caminhos da ilustração

Em entrevista à Tribuna, ilustrador compartilha novo projeto, livro em continuação da coleção ‘Pingos’, o primeiro que irá escrever e ilustrar após morte de Mary França


Por Elisabetta Mazocoli

05/10/2025 às 07h00

eliardo frança
Com tantos anos de carreira e muitos planos pela frente, o ilustrador compartilha com a Tribuna mais sobre seus projetos (Foto: Felipe Couri)

Eliardo França, 84 anos, está sentado à mesa com a prancheta aberta, como costuma passar todos os dias. Um novo desenho o espera: é uma continuação da coleção “Pingos”, criada por ele e a esposa Mary França há mais de 20 anos. Os dois são responsáveis por mais de 300 livros infantis, de acordo com dados da Biblioteca Nacional, e foram parceiros durante 60 anos de casamento. Quando a escritora faleceu, no final de 2024, Eliardo precisou continuar essa parceria de outras maneiras, e encontrou no trabalho uma forma de honrar a vida que sempre levaram. “Fazendo os nossos personagens, acho que estou junto com ela”, comenta o artista. Dessa vez, ele não irá apenas trabalhar na criação das histórias com a ilustração, mas também com a escrita, trabalho que ela desempenhava até então. Com tantos anos de carreira e muitos planos pela frente, o ilustrador compartilha com a Tribuna mais sobre seus projetos.

A história dos pingos foi elaborada por Mary a partir do significado das cores e do que elas poderiam representar quanto à personalidade dos personagens. O vermelho, por exemplo, é ligado à emoção, enquanto o amarelo é alegre e o laranja, aventureiro. A ideia, como explica Eliardo, é que tivesse mais uma série de livros com personagens fixos para trabalhar. “Estou continuando esses projetos que ela deixou escrito, o que já estávamos pensando… Descobri que é muito mais fácil fazer alguma coisa, cuidar da sua vida e do seu tempo, do que não fazer nada”, conta ele. Há materiais que ela deixou escritos e outros sobre os quais eles apenas conversaram, mas que ele continua cultivando, para colocar em prática. Além desse trabalho, ele também tem feito exposições que recuperam sua produção enquanto artista nas últimas décadas. 

Eliardo sempre fala em Mary no tempo presente: se refere a ela como “uma grande artista” que “tem facilidade para criar”. Também é pensando nela que entende que os pingos são tão interessantes, porque sabia o potencial pedagógico que tinham e que poderiam continuar tendo, desta vez em uma história que será sobre os desejos para o mundo. A história dos dois, como conta, é de tranquilidade e de grande parceria, e até por isso ele segue na rotina, fazendo o que acha que ela gostaria que ele fizesse, apesar da dor da perda. Só muda o tempo verbal quando vai falar da vida dos dois: “Tivemos uma vida muito fácil, porque foi muito bom o tempo inteiro. Éramos parceiros de todas as formas”, diz.

Amor à infância

A carreira de Eliardo como ilustrador começou quando foi à editora Brasil América, a Ebal, de Adolfo Aizen, em busca de trabalho. Na época, ele tentou cursar arquitetura, em busca de um diploma que agradasse o pai, mas já sabia que o queria fazer era desenhar. Na verdade, sabia desde a infância que se interessava por essa área, e no curso superior só confirmou suas suspeitas. “Um professor viu meus desenhos e disse: vai procurar sua turma, rapaz, que o seu lugar não é aqui”, relembra.

Ao longo desses anos de carreira, ele e Mary fizeram parte do movimento que fixou o que é a literatura infantil brasileira, junto com nomes como Ziraldo, para dar identidade e traços próprios ao que era local. E nesse processo de criação, o que lhe agrada não é apenas a escrita e a elaboração, mas o contato com as escolas — principalmente com os alunos, com quem sempre tem novas histórias. “Teve uma ocasião em que estava na escola falando sobre o livro e, lá pelas tantas, um garotinho me disse que me amava. Você quer mais que isso? É a glória.”

Transformações no mundo

Acompanhando tantas mudanças no mundo, Eliardo confessa temer a perda de referências, ainda que sua saúde esteja boa. A morte de Tarcísio Delgado, Robert Redford e Hermeto Pascoal, por exemplo, são apenas algumas das que atingiram sua geração nos últimos meses. Essa perda de referências também se estende para o trabalho de ilustração, que segue mudando em ritmo frenético, de uma forma que nem ele mesmo sempre entende. Mas, da mesma forma em que acredita na permanência do legado daqueles homens, também acredita na força das criações originais. “A canetinha sempre funciona. Papel, caneta e tinta. Não podemos deixar isso para trás. A mão do artista desenhando, trabalhando, é outro papo. Será que se o Michelangelo tivesse uma IA teríamos a Capela Sistina?”, reflete.

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