Guilherme Melich retrata artistas que pintaram Murilo Mendes
Expoente da nova geração de pintores locais, juiz-forano expõe no Mamm retratos que revelam não apenas o círculo social e cultural do poeta, mas sujeitos que, de alguma maneira, influenciaram o autor de “A idade do serrote”
“Ele me ensinou a ver.” Em “Recordações de Ismael Nery”, Murilo Mendes credita ao amigo pintor um de seus sentidos. Em passeios, conta, começou “a descobrir as relações de afinidade entre o mundo físico e o moral, a interpretação e fusão das formas, as diferenças entre forma e fôrma, estudo de interesse inesgotável”. Ao longo da vida, o poeta juiz-forano estreitou laços com diversos artistas das telas. Ismael Nery foi o primeiro grande amigo, depois vieram Jorge de Lima, que escrevia e pintava, o casal Vieira da Silva e Arpad Szenes e o italiano Alberto Magnelli. Não eram trocas afetiva, apenas, mas, sobretudo, estéticas. Sobre alguns dos trabalhos de amigos o poeta escreveu. E por alguns dos amigos foi pintado. Em cada tela há um traço do escritor que, segundo o crítico de arte Mário Pedrosa, pintava escrevendo. Em “Olhar a(r)mado”, exposição que abriu na última sexta no Museu de Arte Murilo Mendes, Guilherme Melich pinta os dez artistas que retrataram Murilo, mostrando não apenas o círculo social do poeta, mas sujeitos que, de alguma maneira, influenciaram o autor de “A idade do serrote”.
Em vida, retrataram Murilo, além de Ismael Nery (em 1922), os pintores José Maria dos Reis Junior (1923), Alberto da Veiga Guignard (1930), Cândido Portinari (1931), Vieira da Silva (1942), Arpad Szenes (1943) e Flavio de Carvalho (1951). Somam-se a estes nomes, dentre as 34 telas da mostra, Carlos Bracher, Nívea Bracher e Pedro Guedes, que pintaram o poeta postumamente, para a exposição “Retratos de Murilo”, de 2011. Além de retratos dos escritos, Melich também expõe três autorretratos, desenhos do processo, fotografias que serviram como base e instrumentos de trabalho, como pincéis, bisnagas e paleta. Um dos mais potentes artistas da nova geração da pintura em Juiz de Fora, Melich, de 34 anos, estabelece um novo diálogo com a tradição e com seus antecessores. Não há metalinguagem, tanto que partiu de fotografias, exceto com a pintura de Reis Júnior, cuja imagem está apenas em dois autorretratos, apresentada pelo Museu de Arte Decorativa de Uberaba, que preserva a memória do artista. Também fez uma releitura do retrato de Ismael Nery feito por Guignard. O interesse de Melich está em seu autoral diante de autoridades.
“A exposição é muito mais sobre as figuras que estavam em torno do Murilo Mendes do que sobre ele em si. O Murilo é o eixo central, é a força magnética que atrai todo mundo”, pontua o artista, que ao falar do que cerca o poeta acaba por também falar do poeta. “É a vanguarda modernista. O Ismael (Nery) trazia um monte de referências, entre elas o surrealismo e a paixão dele pelo Chagal. O Guignard traz uma bagagem mais expressiva. Eles e o próprio Portinari estão envolvidos diretamente com o que foi o modernismo brasileiro”, comenta Melich, citando, ainda, o húngaro Arpad Szenes e sua esposa portuguesa Vieira da Silva, que moravam na França até o início dos anos 1940, quando se mudam para o Brasil fugindo do nazismo. No Rio de Janeiro encontraram Murilo Mendes, então vizinho, que lhes apresentou uma cena cultural imersa em discussões acerca dos limites da linguagem, da exploração dos meios, questões próprias da modernidade. Referências para Murilo e também para Melich.
“Flávio de Carvalho sempre foi uma influência fortíssima. E o Guignard é uma referência legal. Fui descobrindo outras figuras do processo, como a Vieira da Silva. Foi uma oportunidade para eu sacar e me aprofundar em alguns outros artistas. O momento que me deu mais empolgação foi descobrir que a Nívea havia retratado ele. Sou maluco com o trabalho dela”, aponta ele, que para retratar a pintora utilizou como base uma fotografia do fotojornalista Fernando Priamo, editor da Tribuna. “É o quadro que mais gosto da exposição”, comenta o artista. “Tenho um interesse pelo ser humano, e o retrato é a forma como questiono isso. Em geral pego o que está ao redor de mim, minha família, meus amigos, que são meus modelos mais frequentes. Talvez essa seja uma das primeiras vezes em que fujo desse universo próximo. Mas não deixa de ser íntimo. Descobrir a Nívea entre esses artistas traz essa produção para perto de mim. A medida que fui me envolvendo com o projeto, fui, gradualmente, me inserindo nesse círculo de amizades. Pinto meio conversando com essas figuras. Vou olhando a foto e me aproximando deles. Na pintura do Flávio de Carvalho, ele está com um sorrisinho, e eu ficava pintando, rindo com ele. O próprio processo da pintura gera uma tentativa de intimidade.”
Referências de Murilo e de Melich
Antes de pintar, Guilherme Melich prepara suas telas com uma base. Anterior a isso, no entanto, estão desenhos, esboços em papel, muitos papéis. “É uma forma de ganhar familiaridades com os traços.” Os trabalhos de “Olhar a(r)mado” partiram para a tela entre o final da manhã e o cair do sol. Melich pintava, parava, voltava a fazer desenhos e lia livros sobre os pintores ou poemas de Murilo Mendes. “O que exagero nas pinturas sintetizo no desenho, no qual tento ser o mais solto possível”, diz ele, que durante os seis meses de seu processo procurou mergulhar na obra de cada um sem, com isso, distanciar-se da sua própria. “É muito mais focado no artista, na figura deles. Cada um com seu nome já traz o próprio legado. Os retratos trazem as minhas referências”, confirma, apontando para uma parede com recortes de revista com a imagem do holandês Rembrandt, do escultor francês Auguste Rodin, do pós-impressionista francês Paul Cézanne e uma reprodução de “A leiteira”, do holandês Johannes Vermeer. “Se eu estudasse o trabalho de cada um e trouxesse para dentro da minha pintura não seria verdadeiro. Meu interesse é muito mais explorar a pintura tendo essas pessoas como tema, motivo para pintar. Fiz a pesquisa sobre cada um, mas não posso dizer que isso influenciou meu trabalho, minha paleta.”
Enquanto a experimentação demarcou projetos individuais anteriores, “Olhar a(r)mado” traz como traço a maturidade do artista. “Aqui tem mais a ver com meu interesse, minhas escolhas. A própria paleta está mais madura, porque sei organizar melhor as cores que vou usar. Amadureci na escolha temática e na maneira de trabalhar. Não cheguei a algo excepcional, mas tenho mais ordenação. Estou menos impulsivo. Penso mais. Estou muito mais lento do que já fui. Eu fazia uma camada, achava que estava legal, deixava secar e ia trabalhar em outra peça. Ter controle dos processos não é dominar totalmente, mas entender como trabalho, somando as camadas e deixando com que o tempo que a pintura leva para ser feita fique expresso na própria fatura dela. Em poucas telas, preparei a tinta, dei algumas pinceladas e achei que funcionou. Em geral, em quase tudo é possível ver a soma das camadas. Raramente pinto de primeira e acho que está valendo”, explica.
Mergulho nas tintas
Quando decide que basta? “É bem subjetivo, mas está associado à leitura do tempo. Se eu me colocar o limite de terminar em um dia, vou ficar numa peleja, espancando a tela, vivendo o maior conflito do mundo. A medida que fui trabalhando na série fui percebendo o que funciona para mim: pinto e aceito o ponto que ela está, no dia seguinte se sentir que tenho que mexer, volto a trabalhar. Sei que está pronto quando não consigo mexer em mais nada. O trabalho pulsa por conta própria”, responde com o retrato de Carlos Bracher nas mãos. O acúmulo de matéria denuncia os muitos dias que a imagem levou para ser construída. Debaixo de uma cor, está outra cor, e outra cor, e outra cor. O peso da tela é proporcional ao amontoado de tinta. Dezenas de bisnagas se acumulam na estante. Ao lado estão pincéis, trinchas e também espátulas, instrumentos utilizados nos trabalhos.
Para cada pintura, Melich empenhou uma energia, um instrumento, um tom diferente. “Ficou totalmente heterogêneo. Alguns se relacionam, mas é uma investigação individual. Ao mesmo tempo em que gosto de produzir em série, entendo que cada um precisa estar resolvido da sua forma. Para a exposição, é mais rico porque não fica chato. É quase uma coletiva de mim”, ri ele, muitos artistas em um só. Guitarrista e vocalista da banda de punk rock Traste, ele também é tatuador e professor em seu ateliê na Rua Luiz Perry. “Minhas fontes de renda vêm das tatuagens e das aulas. Fui ficando tão aficionado com a onda da exposição, pintando e pesquisando, que fui parando de divulgar minhas aulas e tatuando menos, entrando num universo e ficando pobre. As contas vinham, e eu estava apertado. Na etapa final, já não tinha grana”, conta, esperando excursionar com a exposição ou com um recorte dela. Melich também prepara um livro com sua pesquisa, o registro de seu processo e do resultado e textos de autores diferentes sobre os artistas retratados, que planeja inscrever no edital da Lei Murilo Mendes, previsto para agosto deste ano. “Quero rodar com meus trabalhos”, diz ele, tomando para si os versos de Murilo em “A idade do serrote”: “Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver, rever / O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida”.
OLHAR A(R)MADO
De terça a sexta-feira, das 9h às 18h. Sábado, domingo e feriados, das 13h às 18h, no Museu de Arte Murilo Mendes (Rua Benjamin Constant 790).