Recital de piano resgata obra de juiz-forano patrono da Academia Brasileira de Música
Apresentação gratuita de obra de Francisco Valle acontece nesta terça
O pianista André Pires teve seu primeiro contato com Francisco Valle (1869-1906) por meio de uma fotografia acima de um piano. Descobriu que o homem sério na foto era compositor, patrono da cadeira 33 da Academia Brasileira de Música, pianista (como ele) e, para além de tudo isso, nome de rua no Centro de Juiz de Fora, cidade onde Francisco nasceu e morreu. Nesta terça-feira (4), André apresenta no Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), às 19h, recital de piano onde apresentará a obra completa de Valle, ainda desconhecida pelo grande público. O show é gratuito.
Tribuna: André, antes de falarmos propriamente sobre a obra de Valle, queria que falasse um pouco sobre sua trajetória e como foi seu contato com a obra do pianista.
André Pires: Tenho a música em minha vida desde criança. Minha estreia nos palcos deu-se aos quatro anos, ao me apresentar no cine Taboada, em Macaé, solando duas peças ao acordeon. Daí em diante tomei gosto pela coisa e continuei atuando em palcos brasileiros, latino-americanos ou europeus para fazer recitais de piano e órgão, solar concertos, reger orquestra ou coral, fazer música de câmara e participar de shows de MPB. Compus peças originais e escrevi arranjos, gravei LPs e CDs. Também fui professor. Aposentei-me da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2016, onde batalhei durante 18 anos pela criação do Curso de Música.
Em relação a obra de Valle, tive contato com ela pela primeira vez em 2002 ou 2003. Era regente do Coral da UFJF, e todos os cantores do grupo estavam reunidos na Fazenda do Barulho, a convite de um contralto do coro, Elizabeth Valle Botti. Foi quando um retrato de alguém muito sério, na parede acima do piano, motivou minha pergunta sobre de quem se tratava. Era exatamente Francisco Valle, aos 36 anos, bisavô da Elizabeth. Fiquei sabendo que ele tinha sido músico – compositor, pianista e maestro – e que estudara composição musical por quatro anos em Paris, sob a orientação do grande belga César Franck. Ali teve início o que viria a ser minha pesquisa de Doutorado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Qual a importância de resgatar, por meio dessa apresentação, a memória de Francisco Valle?
Quando um conjunto de obras, como as do Valle, têm um valor musical intrínseco, inquestionável, o nome do compositor não pode permanecer no ostracismo, nem suas peças ficarem nas gavetas de um museu ou de uma residência. Elas merecem ser interpretadas, ouvidas e fruídas. Sendo o Francisco alguém que nasceu, viveu e morreu em Juiz de Fora, temos uma forte razão a mais para buscar dar vida à sua música e divulgar seu nome. Esta apresentação no auditório do IAD/UFJF teve exatamente a intenção de motivar outros pianistas a ler suas partituras e trazer novas luzes a cada uma das composições.
Como é, para você, a sensação de fazer essa apresentação? É a primeira vez que apresenta a obra completa de Valle?
Quando fui convidado pelo professor Fernando Vago para um encontro com seus alunos de piano do Curso de Música, planejei tocar e fazer uma análise sucinta da “Sonata em dó menor“. O projeto foi sendo alargado. Primeiro, para contemplar os demais alunos do Bacharelado e da Licenciatura em Música e, num segundo momento, para atingir o público extramuros da universidade. Nesse momento, o projeto inicial da apresentação da sonata para um público especializado já havia se transformado em um “Recital Francisco Valle” aberto à população de Juiz de Fora. Fiquei muito feliz em tornar-me ali o mestre de cerimônias, aquele que apresentará o piano do maestro Francisco Valle aos seus concidadãos, mais de um século depois de sua morte trágica, aos 36 anos, em outubro de 1906.
E sim, é a primeira vez que vou apresentá-las todas em um mesmo recital. Mas já as tenho gravadas no YouTube, onde foram postadas sob forma de vídeo partituras pelo Alexandre Dias, diretor do Instituto do Piano Brasileiro. Composições sinfônicas do Francisco Valle já foram trazidas ao público de Juiz de Fora durante edições remotas do tradicional Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. Os musicólogos Paulo Castagna e Lúcius Mota trouxeram à luz – ou antes, ao som – essas obras. Agora, é a vez do piano de Francisco Valle merecidamente ser ressuscitado em sua terra natal.
Algumas das obras do artista apresentam caráter político, como a sobre a Revolta da Armada (1891-1894), no início da Primeira República. Durante sua carreira ocorreram problemas envolvendo o teor político da obra?
O apagamento histórico sofrido pelo nome e pela obra musical de Francisco Valle não se deveu à questão política, ainda que ele tenha se referenciado em fatos contemporâneos, como no poema sinfônico “Depois da guerra” ou na obra para dois pianos “O batel da dor”, quando do torpedeamento e consequente naufrágio do navio Aquidabã (que explodiu misteriosamente, matando 212 pessoas, no contexto da Revolta). A verdadeira razão desse boicote foi a acusação de que ele não seria um compositor brasileiro, mas um “compositor europeu”.
Uma das obras que vou tocar na terça-feira chama-se “BITU”, cinco variações sobre o tema da canção folclórica hoje conhecida como “Cai, cai, balão”. Nada comprova melhor a injustiça daquela acusação que apontei há pouco, após a instalação da hegemonia do pensamento nacional-modernista pós 1922. É um tema brasileiríssimo! Não foi à toa que Villa-Lobos, ao criar em 1945 a Academia Brasileira de Música, trouxe o nome de Francisco Valle como patrono da cadeira 33.
*Estagiário sob supervisão da editora Cecília Itaborahy