Inauguração do Teatro Paschoal Carlos Magno resgata memória de Mello Reis
Vera Mello Reis, destaca político humanista e comprometido com a cultura, expressa na criação do teatro e da Funalfa
“Quando eu morrer, ninguém precisa chorar. Fui feliz. Realizei meus objetivos na vida e tive um marido que não foi apenas um marido, mas um companheiro, meu amigo, que sempre me estimulou.” Nas lembranças de Vera Lúcia Costa de Mello Reis, estão preservados os momentos iniciais de uma relação que sempre se mostrou firme o bastante para conquistar a longevidade. “Começamos a namorar quando estávamos na faculdade. Lembro que falei que não daria certo, porque gostava muito de esporte, jogava vôlei, e não deixaria de treinar para arrumar um namorado. Ele falou: ‘Quem falou que vou te proibir?!’. Ele me levava e me buscava no Olímpico. Tanto é que joguei até depois de casada, viajei e tudo. Aprendi muito com ele. Nos respeitávamos muito. Foi um tempo muito bom. Aprendi a ceder”, emociona-se a mulher de 75 anos, que em 2018 celebraria 50 anos de união com um homem que, ao se despedir em novembro de 2010, aos 73 anos, manteve-se presente em cada canto de Juiz de Fora. Francisco Antônio de Mello Reis sobrevive no projeto de uma urbe que visualizava através dos tempos.
Basta sair de casa, num condomínio no Bairro Aeroporto, Cidade Alta, para que Vera se depare com a avenida que leva o nome do marido. Logo à frente, o Parque da Lajinha, outro projeto que leva sua assinatura. Ruas, avenidas, prédios, atividades, empresas e um teatro que almejava concluir. “Estou meio sufocada só pela ideia da inauguração do teatro. É um sonho que está sendo realizado. Ele estaria muito feliz. Era um compromisso dele com o Paschoal Carlos Magno, com o José Luiz (Ribeiro), com a cidade e com ele próprio”, afirma a viúva, testemunha de uma promessa que se tornou construção e, em menos de um ano, transtorno. “Durante a obra, nós sofremos muito. Foi um problema sério. E todos os estudos tinham sido feitos por empresas conceituadas. Todas as vezes que chovia, eu ficava com medo, mas deu para fazer a contenção”, conta Vera, referindo-se às questões geológicas que obrigaram a paralisação da edificação.
Numa das paredes da sala de uma agigantada casa para onde o casal se mudou em 2000, está um vestígio do espaço inaugurado quase 40 anos depois de iniciado. Grego radicado no Rio de Janeiro, Eleutheriadis, responsável pelo primeiro projeto arquitetônico do teatro, assina uma pintura a retratar uma paisagem campestre. Em outros cantos, estão trabalhos de Katarina, uma pouco conhecida artista russa residente em Juiz de Fora, de Jayme Aguiar, de Renato Stehling e de Marilda Maestrini. Próximo à entrada de sua casa, está uma natureza morta de Nívea Bracher. “Celina (irmã de Nívea) era colega de escrever carta para ele na faculdade, mas ela morreu muito cedo”, observa Vera, entre esculturas e outros objetos artísticos. Numa estante da sala de TV, centenas de DVDs e CDs são preservados em gavetas projetadas por Mello Reis, o mesmo que assina um quadro com recortes de jornais e fotografias, decoração da primeira residência do casal.
Ele conhecia a cultura
“Ele gostava muito de música. Em todos os cômodos desta casa, tem uma caixa de som, na cozinha, nos banheiros. Ele gostava tanto de música popular quanto de música clássica, e ópera também”, recorda-se Vera do político que assumiu a Prefeitura em 1977 e tratou logo de oferecer à cultura um lugar específico. “Ele colocou o Ismair Zaghetto como superintendente e deu liberdade, dizendo que a Funalfa não tinha cor nem ideologia, era cultura para todo mundo. Ele valorizava muito as bandas de bairro, por exemplo. Uma das formas que encontrou para incentivá-las foi fazendo com que domingo, de manhã, cada uma se apresentasse no Parque Halfeld. Também sempre procuramos levar cultura para os bairros. O palco era um caminhão, que mandamos ampliar a carroceria. Tinha peça de teatro, capoeira, companhias de dança. A Corpus dançou em cima do caminhão.”
“Estou meio sufocada só pela ideia da inauguração do teatro. É um sonho que está sendo realizado. Ele (Mello Reis) estaria muito feliz. Era um compromisso dele com o Paschoal Carlos Magno, com o José Luiz (Ribeiro), com a cidade e com ele próprio”
Vera Mello Reis
Ao criar a pasta cultural, Mello Reis esperava potencializar o Museu Mariano Procópio, do qual se tornou superintendente mais tarde, de 2005 a 2008, ano em que, bastante adoecido, não aguentou inaugurar o parque recém-reformado. “Ele fez aquelas galerias de cima, no anexo, que era um projeto do Alfredo. A ideia era possibilitar uma maior exposição das peças do museu. Infelizmente o Mariano Procópio ficou muito abandonado, e ele ficou muito aborrecido, como se levasse uma facada no peito. Ele tinha todos os projetos para a restauração quando houve o problema com as contas da Prefeitura. O teatro e o museu eram as maiores preocupações dele”, ressalta a viúva, destacando características humanistas de um gestor de tantas realizações. “Ele era muito preocupado em fazer uma escadinha para quem tinha que pegar o ônibus na rua de baixo, por exemplo, que tinha a mesma importância que a Siderúrgica Mendes Júnior. Para ele, uma banda de bairro era tão importante quanto um Mergulhão ou uma Avenida Rio Branco. Ele tinha uma preocupação com as pessoas.”
Ele conhecia as engrenagens
Quando começou a mexer no arquivo do marido, Vera encontrou respostas para antigas perguntas. “Na Academia de Commercio ele foi presidente do grêmio lítero-artístico, que era coordenado pelo professor Murílio Hingel. Havia leituras de poesia, eles escutavam músicas, assistiam a filmes e óperas, e o professor explicava. Essa formação (cultural) vem muito dessa atuação na infância. O lado político também, já que ele foi presidente do diretório acadêmico do colégio”, explica. Na década de 1950, inclusive, diante de uma greve, decretada no Rio de Janeiro pela UNE (União Nacional dos Estudantes), discutindo a desigualdade no país, Mello Reis decidiu por também decretá-la por aqui, paralisando as atividades escolares e fechando a Rua Halfeld. O vigor político, com o qual Vera foi resistente no início, sempre existiu, portanto.
“Quando ele foi candidato a vereador, não dei a mínima, nem pedi voto. Fui lá e votei. Mas quando surgiu a oportunidade de ser prefeito, um ano e meio depois, falei: ‘Não! Nós não temos dinheiro para isso! E concorrer com o Itamar é uma loucura!’. Briguei até o último minuto. Deixei-o na Câmara, onde hoje é a Cesama, e fui para a casa de mamãe. Fiquei escutando pelo rádio, e quando anunciaram que ele seria mesmo o candidato, fui e fiquei lá atrás. Quando ele me viu, levou um susto. Dali já saímos fazendo campanha e não parei mais, mas não deixei minha vida profissional de lado. Continuei sendo professora”, orgulha-se ela, que permaneceu em Juiz de Fora quando ele assumiu o cargo de deputado federal, indo morar em Brasília em 1987, e de secretário estadual, tendo que se mudar para Belo Horizonte em 1991.
Em casa, garante a mulher, a política sempre fazia parte do menu. Afinal, ambos eram formados em “História – Organização social e política” pela UFJF. “Todo mundo acha que ele era engenheiro ou arquiteto. Ele gostava muito, estudava. Os pais dele queriam que ele fizesse medicina, mas fez o científico, trancou e foi fazer o curso para ser contador. Depois passou para trabalhar no banco como contínuo, fazendo cobranças de bicicleta. Mais tarde foi ser caixa. Com isso conseguiu ir para Brasília, onde ficou enlouquecido com aquela quantidade de obras”, enumera Vera, que se decidiu pela vida acadêmica. Durante a faculdade, deu aula em jardim de infância de escolas públicas e privadas até se formar e ser convidada para substituir Murílio Hingel na Faculdade de Educação da UFJF. Lecionava “História econômica” quando aposentou-se, em 1987.
Ele conhecia o subterrâneo
“Ele se realizou. Desde criança dizia que um dia seria prefeito de Juiz de Fora”, assegura a mulher que, por muitas vezes, acompanhou o marido na construção da cidade que ele projetava para o futuro, com o vanguardismo que só mesmo o tempo seria capaz de enxergar.
“Quando ele criou o Demlurb, quis acabar com a chamada zona da Rua Henrique Vaz. Ele tirou várias mulheres de lá e levou para morar em vários lugares. Eu entrei, com a assistente social, para fazer um trabalho com elas. Um diretor falou: ‘Essas mulheres não sabem varrer, não têm saúde!’. Eu falei: ‘Então agora têm assistência médica e poderão ser valorizadas’. Quando entregamos os uniformes, todas queriam e correram para pegar. Preparamos um lanche e começamos a explicar a importância do trabalho que elas fariam. Disse que elas não tiveram a oportunidade que tive, de estudar, mas nem por isso o trabalho delas era de menor valor que o meu, já que uma cidade limpa atrai turistas, evita doenças, dentre outras coisas. Dali parta frente sempre ia visitá-las.”
Numa família de nove irmãos, Vera convive, hoje, com a ausência de cinco deles, além do companheiro. Mora com a saudade. “Até hoje não me desliguei, por mais incrível que pareça. O tempo é algo indefinível. Quando entro de carro na garagem, tenho a sensação de que ele está na porta, me esperando. E isso é terrível, muito difícil. Ao mesmo tempo, não posso querer que a vida seja do jeito que imagino”, diz a mulher de gentileza proporcional à sensibilidade.
Mora com a certeza de que a memória é o melhor lugar para se pousar uma vida. Mora com muitas e boas lembranças, de um homem detalhista – e ri ao contar -, capaz de buscar uma fita métrica em casa para conferir os centímetros que faltavam num passeio em reforma. “Em 2010 havia uma obra na Avenida Independência (hoje Itamar Franco). Era uma canalização, perto do portão da universidade. Ele redigiu à mão um relatório, falando o que achava e o que tinha no subsolo, como deveriam ser as galerias, para onde deveriam desaguar. Mandou esse documento para os secretários de obras, para o diretor do Monte Sinai, para o reitor. Eu disse para ele: ‘Francisco Antônio, meu filho, você não é engenheiro, não conhece a obra’. E ele falou: ‘Mas eu conheço a cidade’.” O tempo confirmou o argumento.