‘Por favor, socorro’ denuncia violações no sistema prisional de Juiz de Fora

Curta-metragem de Ana Lívia Medeiros e Sinval de Abranches é premiado em votação popular na categoria “Documental Mostra Nacional” do Festival Internacional de Cinema de Santos


Por Gabriel Ferreira Borges

01/07/2021 às 07h00- Atualizada 01/07/2021 às 22h03

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A produtora Ana Lívia Faria de Medeiros (à esquerda) e a diarista Maria Aparecida de Oliveira (à direita) durante as gravações de “Por favor, socorro” (Foto: Divulgação)

A diarista Maria Aparecida de Oliveira não tem notícias do filho há meses. Ele cumpre pena em regime fechado na Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pires, no Bairro Linhares. “Neste ano, já mandei quatro cartas (para o filho). Chegou uma. Mas não recebi uma (resposta) até hoje. Não é por falta de caderno, de caneta, não. Porque eu mando caneta e caderno.” A agonia de Maria Aparecida conduz a narrativa do documentário “Por favor, socorro” (2021), de Ana Lívia Faria de Medeiros e Sinval de Abranches. O curta-metragem foi premiado pela votação popular na categoria “Documental Mostra Nacional” na última terça-feira (29), no 6º Festival Internacional de Cinema de Santos. Além disso, o filme foi selecionado para o Montreal Independent Film Festival 2021 e para o Berlin Indie Festival 2022. O título independente levará para além de Juiz de Fora denúncias sobre violações de direitos humanos no sistema prisional em meio à pandemia de Covid-19.

“Com o vírus dentro do sistema, a gente fica mais apreensiva”, pontua Maria Aparecida à produção. “A gente sabe que tem doentes, que tem várias pessoas contaminadas. O que fazer? Não sei. A gente não tem acesso a nada. Às vezes tem pessoas para quem a gente pede informação. Se eles querem, dão. Se não, não dão. A penitenciária (Ariosvaldo Campos Pires), é muito difícil lidar com as pessoas de lá.” As dificuldades enfrentadas por Maria Aparecida são comuns a outros familiares, já que as visitas presenciais estão suspensas em razão das restrições sanitárias impostas pela pandemia, conforme afirma à Tribuna o conselheiro de Execução Penal, Manoel Paixão. “Essa situação é comum em todas as unidades. Porém, ela ultimamente tem se acentuado muito na Ariosvaldo. A Ariosvaldo sempre foi o carro-chefe de denúncias. A Maria Aparecida é um retrato de várias mães, esposas, parentes e amigos que passam por essa situação. Sempre passaram.” Paixão é um dos entrevistados por Ana Lívia e Sinval no curta de 19 minutos. Segundo ele, há vários outros problemas, como a falta de ventilação. “As ventanas de latas colocadas ao redor das celas da Ariosvaldo ainda antes da pandemia para evitar o contato entre os detentos os expõem ainda mais ao contágio”, diz o conselheiro.

Esposas fazem coro a Maria Aparecida em “Por favor, socorro”. O curta-metragem, ao fim, elenca questionamentos de companheiras sobre o cumprimento de medidas de prevenção ao contágio da Covid-19. Desde a utilização de máscaras, luvas e álcool em gel por agentes penitenciários quando visitam as galerias até a superlotação de celas sem o isolamento de detentos dos grupos de risco. Em cidades da região, como Ponte Nova e Muriaé, as unidades prisionais comunicam às famílias caso o detento venha a se contaminar, conforme a líder da Associação de Familiares e Amigos de Presos, Miriam Louzada. “Sei porque tenho um familiar em Ponte Nova. Quando o preso testa positivo, a assistente social entra em contato com o familiar para informar sobre o teste, se o detento está na ala de isolamento etc. Ela dá uma satisfação. Infelizmente, aqui em Juiz de Fora, não.” As visitas virtuais, eventual saída em busca de informações, são raras, acrescenta. “Muitas mulheres têm reclamado que não estão conseguindo. Quando a gente reclama, tenta entrar em contato com as unidades, que dizem que as visitas estão acontecendo. A gente sabe que são muitos presos, muitos familiares, mas muitas mulheres não tiveram acesso ainda.”

‘Essa história precisava ser contada’

A Associação de Familiares e Amigos de Presos reivindica junto às autoridades locais o cumprimento dos direitos dos detentos. O movimento é assessorado juridicamente pelo Coletivo Liberdade, do qual faz parte Ana Lívia, produtora de “Por favor, socorro”. Ao fim de 2020, a associação e o coletivo colheram relatos de familiares – inseridos no documentário – em busca de expor as condições do sistema prisional em uma campanha virtual. Por fim, não deu certo. Até que surgiu a parceria com Sinval de Abranches. “Eu precisava de alguém junto a mim nessa parte do audiovisual, que entendia um pouco melhor sobre essas coisas técnicas. Então, consegui um emprego, onde conheci o Sinval. Juntou a fome com a vontade de comer.” Sinval, responsável pela edição, pelo roteiro e pela montagem, já queria fazer um documentário em que a pandemia fosse o plano de fundo. “Ainda não tinha um tema. Conversando com a Ana, ela me contou sobre o trabalho que faz no Coletivo dando suporte à Associação. Essa história precisava ser contada.”

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Sinval de Abranches assina a direção, o roteiro e a montagem do documentário, cuja fotografia é em preto e branco (Foto: Divulgação)

Ambos enfrentaram muitos sobressaltos durante a pré-produção. A princípio, explica Ana Lívia, a proposta era entrevistar algum detento que tivesse passado pelo regime fechado durante a pandemia. “Tínhamos conseguido uma fonte assim e chegamos a fazer a pré-entrevista. Seria sensacional, porque pegaríamos um egresso e a companheira. Já seriam dois vieses para contar a história. Mas eles desistiram de última hora porque ficaram muito receosos.” O egresso estava em um período de “saidinha”. Quando voltou à unidade prisional, segundo Sinval, apanhou. “Quando as outras mulheres da associação ficam sabendo de alguém que estava tendo contato com algum jornalista e apanhou… pode não ter sido esse o motivo, mas elas caem fora. Foi muito difícil encontrar personagem. Foi realmente uma sorte muito grande ter conhecido alguém com a abertura da Maria Aparecida para contar a história.” Sem falar na necessidade de encontros presenciais para as filmagens. “Onde vai ser a gravação? A pessoa tem comorbidades?”

Para Sinval, não foram ele e Ana que encontraram Maria Aparecida; a diarista que os encontrou. “Essas mulheres, esses familiares têm muito receio de falar. Eles têm muito medo de que os presos que estão lá dentro sofram alguma represália, que aconteça alguma coisa. Ao mesmo tempo em que ficam aflitos querendo denunciar, não querem colocar o rosto na frente das câmeras.” E, acrescenta, o personagem principal de “Por favor, socorro” não poderia ser anônimo. “Não dava para colocar o nosso personagem como uma sombra na parede, um borrão. Queríamos dar uma cara. Então, a Ana, com muito custo, perguntando dentro da comunidade, conseguiu a disponibilidade da Maria Aparecida.” Mas com algumas ressalvas, pondera Sinval. “Como, por exemplo, não mostrar a imagem do filho dela adulto, não revelar o nome dele etc. Então, ela contou a história sem revelar muitos detalhes.”

Estado nega denúncias

Em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fez uma série de recomendações a tribunais e magistrados para a adoção de medidas preventivas à propagação da Covid-19 – Recomendação 62/2020. A Penitenciária Professor Ariosvaldo Campos Pires é administrada pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) de Minas Gerais. Questionada pela Tribuna sobre as denúncias de violação de direitos humanos, a Sejusp alega que, conforme a direção da Ariosvaldo Campos Pires, “são improcedentes” . De acordo com a Sejusp, tanto a pasta quanto o Departamento Penitenciário de Minas Gerais (Depen/MG) estão em constante diálogo com todos os setores e unidades prisionais do Estado “estudando e analisando as melhores formas de lidar com a pandemia e prevenir e controlar a disseminação do coronavírus”.

De acordo com a Sejusp, as unidades prisionais possuem setores de saúde com médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, psicólogos e dentistas que realizam atendimentos diariamente, bem como assistentes sociais. “Dentre outras atribuições, é responsável pelo contato com os familiares dos detentos, a fim de se manter ou restabelecer o vínculo familiar. Logo quando o indivíduo é admitido na unidade prisional, o serviço social realizada uma ligação para o contato informado pelo acautelado”, explica. Posteriormente, pontua a Sejusp, seriam agendados outros atendimentos, que incluiriam ligações telefônicas e videochamadas. “Por semana, é registrada, na unidade prisional, uma média de 70 comunicações por carta, 50 videoconferências com familiares – realizadas inclusive aos sábados e domingos – e 50 ligações telefônicas. Existe um rodízio de agendamento das visitas virtuais, conforme a viabilidade de execução e, por esta razão, alguns familiares podem não ser atendidos semanalmente.”

Conforme a secretaria, além de visitas virtuais realizadas pelas unidades prisionais, os familiares que não possuem acesso à internet ou a dispositivos para videochamadas têm disponível o Núcleo de Assistência à Família (NAF) do Município. “Para solicitar esse serviço, é preciso marcar uma entrevista com uma assistente social, por meio do Portal MG-Serviços (www.mg.gov.br). Basta acessar a aba ‘atendimento’, em seguida ‘atendimento online gratuito’, e por fim ‘atendimento psicossocial’, na área Sejusp. Ou então, procurar atendimento no próprio NAF, que fica localizado na sede do UAI/JF (Avenida Brasil 6.345, Shopping Jardim Norte, Lojas 100/101, Bairro Mariano Procópio).”

A Sejusp, por fim, diz que todas as medidas sanitárias dispostas nos protocolos que tratam da prevenção à Covid-19 estão sendo adotadas na Ariosvaldo Campos Pires. “Tais como sanitização periódica de todo o estabelecimento prisional, uso obrigatório de máscara de proteção, disponibilização de álcool em gel e outros equipamentos de proteção individual, medidas de isolamento para casos positivos e suspeitos, aferição de temperatura dos servidores e realização de testes para diagnóstico.” A respeito das ventanas das celas, a Sejusp alega que não estão vedadas. “Foram instaladas, do lado externo delas, estruturas metálicas com passagem de ar, com o único objetivo de reforçar a segurança para evitar a entrada de ilícitos por meio de arremessos extramuros. Cabe ressaltar que a unidade prisional está localizada em meio rural, onde não há delimitação de perímetro de segurança.”

 

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