Mais de 30 detentos se casam em Juiz de Fora em iniciativa pioneira
Projeto possibilitou formalização da união, respeitando as restrições impostas pela pandemia
“Você gostaria de se casar um dia?” Essa pergunta é daquelas que provocam sensações diferentes em quem a ouve. Expectativa, medo e incerteza são algumas das reações comuns provocadas por ela. O questionamento fez parte de uma pesquisa realizada por membros do Conselho da Comunidade na Execução Penal da Comarca de Juiz de Fora em duas penitenciárias da cidade. De início, quase 50 respostas positivas foram ouvidas. No final, 35 mantiveram o “sim” e integraram o projeto “Fortalecendo os laços através do matrimônio”, que propiciou, pela primeira em Juiz de Fora, a oportunidade de presos se casarem de forma gratuita.
A iniciativa liderada pelo Conselho da Comunidade, órgão que cria a ponte entre a população carcerária e a sociedade, contaria com cerimônia coletiva e festa para os recém-casados. A pandemia modificou os planos, mas não impediu a união dos casais. Os membros da entidade conseguiram a autorização de juízes e da promotoria, possibilitando que os noivos, que não estão no cárcere, pudessem dar continuidade ao trâmite. Um documento de homologação foi entregue a eles este mês, possibilitando a formalização da união em cartório de forma gratuita e a retirada da certidão de casamento, mesmo sem a presença da outra parte. “Não houve cerimônia, não teve convidados, não foi como desejavam, mas houve muita emoção. Foi gratificante”, comentou a primeira secretária do Conselho, Tânia Mara, no dia da entrega dos documentos, que coroou o trabalho de quase um ano.
“Começamos a desenvolver o projeto no fim do ano passado. Então começaram a se desenrolar os trâmites, os papéis. Todos os detentos assinaram, ou seja, foram feitos todos os procedimentos normais para a realização de um casamento. E, então, veio o coronavírus. Por conta do afastamento social, a gente não podia continuar com a cerimônia em si. Porém, como foi um processo que já havíamos começado e que conseguimos finalizá-lo, levamos adiante”, explica Tânia.
A iniciativa contou com muitas parcerias da esfera judicial, como a diretora do Fórum Benjamim Colucci, Raquel Gomes Barbosa, o juiz titular da Vara de Execuções Criminais, Evaldo Gavazza, os promotores Sandra Totti e Marcelo de Souza, o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), o advogado do Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universo de Juiz de Fora, Arão Silva Junior, e os diretores das penitenciárias Professor Ariosvaldo Campos Pires e José Edson Cavalieri.
Garantia de estrutura familiar
Um dos principais objetivos do projeto é fortalecer o processo de ressocialização do detento a partir da garantia de uma estrutura familiar que se forma ou formaliza a partir da oficialização do matrimônio, como explica a primeira secretária do Conselho. “Queremos garantir a eles uma estrutura familiar. Muitos ali já são avôs, com 30 anos de convivência com a mulher, e só estão se casando agora. É um passo importante, porque a pessoa se sente cidadã, apesar de estar intramuros. Eu acho que esse sentimento e a estruturação familiar criam uma expectativa de ressocialização. A pessoa se sente mais abraçada. Quem sente o apoio, busca melhora para si mesmo. É um processo que só traz benefícios.”
Números retratam abandono de mulheres no cárcere
Por mais que a pesquisa de interesse realizada pelo Conselho da Comunidade tenha sido efetuada entre os públicos feminino e masculino, dos 35 casais, apenas um tem como uma das partes uma detenta. De acordo com a professora Ellen Rodrigues, que coordena o Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito (Nepcrim) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), este número retrata a realidade de abandono vivida por mulheres em cárcere. “Ilustra muito bem a solidão das mulheres encarceradas. Relata o que a gente já detecta na prática, que realmente as mulheres, esposas dos detentos, continuam visitando, continuam mantendo contato e até constituindo a união formal do casamento. Já os companheiros das mulheres presas não têm esse comportamento. Geralmente, quando elas vão presas, são abandonadas. É uma triste realidade que não acontece só em Juiz de Fora. É um retrato nacional do abandono feminino no cárcere.”