Trabalhadores tentam driblar o calorão no dia a dia
Empresas, como os Correios, permitem alteração do horário de entrega dos carteiros por causa da exposição direta ao sol. Nos ônibus, motoristas podem optar pela bermuda. Neste janeiro, cidade já teve 15 dias com termômetros acima dos 30 graus
Há mais de um ano, uma pequena alteração modificou a forma de os carteiros trabalharem em todo o território nacional. As entregas, que eram feitas durante a tarde, passaram a ser matutinas. A inversão, tinha como um de seus objetivos, tirar os trabalhadores da exposição direta ao sol, no período do dia em que a radiação é mais forte. De acordo com o gerente de atividades externas dos Correios em Juiz de Fora, Anderson Laureano, essa alteração, conhecida como Projeto Piloto, só foi possível na cidade, porque o município atende a uma série de critérios técnicos necessários para que a entrega no período da manhã ocorra, como a codificação pelo CEP e o recebimento da carga em horário que permita a preparação de objetos urgentes no mesmo dia, sem prejuízo para os clientes. Medidas como essa são tomadas em diversos outros postos de trabalho, na tentativa de tornar a lida dos profissionais menos extenuante, por causa do calor.
É importante lembrar que a temperatura da cidade, em escala histórica, apresenta uma tendência de elevação, se intensificando, especialmente, nos últimos dez anos, de acordo com a climatologista e doutora em Geografia, Cássia de Castro Martins Ferreira. A Tribuna conversou com alguns trabalhadores, para saber como o calor impacta em suas rotinas e como eles lidam com as altas temperaturas.
Os primeiros dias de 2019 já são marcados por picos significativos de calor. Para se ter ideia, nos primeiros 25 dias de janeiros, contabilizados até a última sexta-feira (25), o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou 15 dias com temperaturas superiores a 30 graus. Com um detalhe: a marca foi alcançada por pelo menos 11 dias consecutivos. A intensificação da massa de ar seco e quente sobre parte da região Sudeste do país é a responsável pela forte onda de calor. Quando em atuação, este fenômeno climatológico cria uma barreira e impede a aproximação das frentes frias e a entrada da umidade proveniente da região Amazônica, as principais responsáveis pelas precipitações nesta época do ano.
No caso dos trabalhadores dos Correios, com toda essa sensação de calor, a resposta ao Projeto Piloto foi rápida e muito positiva. Sebastião Teixeira é carteiro há 34 anos e se preparava para fazer entregas na região Central, quando a equipe da Tribuna o encontrou. Ele organizou seu material de trabalho e colocou um boné antes de sair. Apesar de os Correios oferecerem bermudas no uniforme, ele preferiu sair de calças. Para Sebastião, a alteração nos horários das entregas trouxe benefícios. “Conseguimos isso, por meio do Sindicato e de campanhas. Ainda que a gente pegue uma boa parte do calor mais forte, das 10h ao meio-dia, é bem menos quente do que fazer a distribuição durante toda a tarde, quando o calor é insuportável. Não ficamos mais à mercê do sol. Além disso, os Correios nos disponibilizam o protetor solar, que é a proteção da cútis, o chapéu, o boné e o óculos solar.” O gerente Anderson Laureano diz que ainda há a possibilidade de que outras ações sejam somadas ao projeto.
Os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como filtro solar com repelente e boné, também são oferecidos pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (Demlurb) aos seus funcionários, de acordo com a assessoria do órgão. Além desses objetos, de acordo com o Demlurb, os trabalhadores contam com um ônibus de apoio e banheiro químico para os servidores da capina e varrição. Alice Glória de Assis Vieira trabalha na varrição das ruas, no trecho entre os bairros Costa Carvalho e Vitorino Braga, há três anos. Ela mostra que, além dos EPIs oferecidos pelo Demlurb, ainda incrementou a proteção por conta própria. “Pela manhã, é mais fácil, porque tem sombra do lado em que eu trabalho. Depois das 9h, o sol começa a ficar mais forte, e eu reforço a proteção. Uso um chapéu com uma proteção para o pescoço e um manguito, que eu comprei de uma amiga, para proteger os braços. Já saio de casa com o protetor solar, mas, por volta do meio-dia, reaplico. Ao longo do dia, tomo muita água e, quando o sol fica muito forte, procuro uma sombra para repousar um pouco. Às vezes, até pego um picolé ou um chup- chup”, conta.
Os trabalhadores do transporte coletivo urbano aguardavam uma resposta para a demanda da liberação do uso de bermudas desde 2009. O projeto de Lei aguardou sanção até 2017. “Tivemos que elaborar um modelo de bermuda, fazer todo o trâmite, levar o projeto para a Secretaria de Transporte e Trânsito (Settra), para que ele pudesse ser aprovado pela Prefeitura. Tem um ano que as bermudas estão liberadas, e há vários profissionais usando. Cerca de 80% dos rodoviários já aderiram à nova peça do uniforme”, explicou o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Coletivo Urbano (Sinttro), Vagner Evangelista Corrêa. Ainda de acordo com ele, outra cobrança que sempre é feita às empresas é a da presença de água nos pontos finais. “Os motoristas e trocadores precisam estar sempre se reidratando, porque o calor é muito forte dentro do ônibus. Fazemos muita pressão para que eles sempre tenham acesso à água”, reforça.
Motorista de um coletivo que atende ao Bairro Grama há sete anos, Marcos Henrique Alves Pereira avalia positivamente a mudança. “Para mim representa conforto. Ficamos mais à vontade. Facilita, até mesmo, a nossa entrada e a nossa saída do ônibus. Para falar a verdade, melhorou 100%. Onde nós sentamos é muito perto do motor, por isso, a bermuda é importante, porque, com a calça, abafa mais. Quem não aderiu, em um primeiro momento, agora está correndo atrás.”
Além do sol
Em casos específicos, como o dos motoristas de coletivos, além do sol, há outras fontes de calor que elevam ainda mais a temperatura. Dimas Xavier Migliorini trabalhava em frente ao forno de uma pizzaria, quando surgiu a oportunidade de começar a trabalhar com uma chapa. Ele passou a trabalhar nas feiras livres, aos sábados e domingos. Agora também leva sua chapa para a feira noturna. “São 30 anos trabalhando com essas duas fontes de calor. No início é muito complicado, não é brincadeira não, mas com o tempo, você se acostuma. Hoje não faz muita diferença. É claro que eu sinto o calor, mas ele deixou de ser insuportável”, narra. Na feira, não tem como fugir. É calor o tempo todo nessa época. “O que eu faço para amenizar é tomar muita água. Tomo pelo menos três litros. No domingo, até mais. Também uso uma toalinha, porque não podemos ficar pingando suor. Eu prefiro trabalhar no frio, porque no frio a chapa aquece a gente, mas agora o calor já não me incomoda mais.”
Assim como Dimas, Jaime Carlos Fonseca trabalha como pasteleiro há 30 anos. Ainda que esteja um pouco mais protegido dentro da estrutura do caminhão, não deixa de estar exposto. “Para amenizar um pouco, vamos abrindo as portas, aumentando a ventilação e trabalhando como dá. Tomamos bastante água. O calor é bom para nós, porque vendemos mais. As pessoas saem mais para a praça de alimentação da feira. Elas combinam o pastel com o caldo de cana bem gelado, casa igual Romeu e Julieta.” Jaime comemora o calor, embora sofra por causa da temperatura. “O problema, para nós, é quando chove, porque não tem feira. Vai todo mundo embora. Se fizer calor sem chover, está bom demais.”
Escassez de chuvas e altas temperaturas
Até agora, janeiro de 2019 só pode ser comparado ao janeiro de 2015, conforme dados históricos do Inmet. Isso porque, naquele ano, o número de dias com temperaturas acima dos 30 graus chegou a 19. Em 2016, foram seis, em 2017, cinco, e, em 2018, seis dias. Além da onda de calor, os trabalhadores juiz-foranos enfrentam um janeiro seco. Até a última sexta o acumulado de precipitações na cidade era de apenas 84,3 milímetros, que representa 26,1% do volume de chuvas previsto para todo o mês. Em 2015, mesmo com o forte calor, choveu na cidade 148,2 milímetros. E é justamente a escassez de chuvas uma das responsáveis pelas altas temperaturas.
De acordo com a meteorologista Anete Fernandes, do 5º Distrito do Inmet, em Belo Horizonte, o veranico, que é a ausência de chuvas dentro do período chuvoso, contribui para essa elevação das máximas. Janeiro, segundo Anete, é o mês que concentra maior volume de chuvas no estado inteiro, em função de um canal de umidade vindo da Amazônia para a região Central e Sudeste do país, que se junta ao sistema formado pela zona de convergência do Atlântico Sul, responsável por manter a ocorrência de nebulosidade, favorecendo a presença de chuvas constantes por vários dias consecutivos. “Esse quadro, em condições normais, ajuda a fazer com que a temperatura não fique tão elevada. Quando essas condições não ocorrem, o que vem acontecendo, o calor fica mais acentuado.”
Tendência de elevação
De acordo com a professora Cássia de Castro Martins Ferreira, coordenadora do Laboratório de Climatologia e Análise Ambiental da UFJF, as temperaturas na área urbana de Juiz de Fora vêm apresentando uma tendência de aumento, quando se analisa a série histórica desde 1972. Houve um aumento de temperatura de quatro graus. Esse aumento é verificado, conforme a professora, principalmente nos últimos dez anos. “Além disso, houve um aumento no número de dias com temperaturas acima dos 30 graus na cidade. Isso repercute em dias bem mais quentes na cidade, o que não era comum”.
Cássia explica que, como os dias mais quentes são, geralmente, aqueles com céu limpo, sem nuvens e com poucos ventos, a sensação de calor aumenta. Isso ocorre porque a cidade consegue agregar e absorver mais essa energia, aumentando ainda mais a temperatura no interior dela. Associando isso à falta de espaços verdes, verticalização e fluxo intenso de automóveis, gera-se um quadro de maior retenção de radiação e maiores temperaturas no espaço intra-urbano. O resultado dessa conta é um maior mal-estar para o trabalhador.
“O aumento da temperatura para o ser humano aumenta o estresse, gera maior cansaço, sono, pois o organismo tende a entrar em repouso para minimizar a temperatura interna, sendo importante o repouso ou a não exposição no período mais quente do dia. Mas, infelizmente, continuamos trabalhando normalmente como se isso não interferisse. Vários países têm, nesse período do dia, uma minimização ou total encerramento das atividades, como ocorre em várias cidades da França, por exemplo.” A tendência, segundo a docente, é o agravamento do quadro, caso a cidade não incorpore no seu planejamento elementos inibidores, como ruas mais arborizadas. “No final, a cidade precisa se preparar e começar a incorporar medidas para mitigar a temperatura, uma vez que elas possuem a tendência a aumentar e a população começa a sentir estas alterações. Em vários países do mundo, as cidades já estão realizando e aplicando seus planos de adaptação às alterações climáticas, talvez essa seja uma meta ainda muito distante para nós, mas que um dia deverá ser pensado.”
Como fica o corpo?
O clínico geral e médico do trabalho Ricardo Botelho explica que, quando há excesso de calor, existem duas situações relacionadas ao corpo. Há o calor produzido pelo esforço físico exigido pela atividade e a segunda se dá quando há uma outra fonte de calor que faz parte do ofício. “Quando esse calor recebido for maior que aquele dissipado pelo corpo, normalmente, você tem um quadro de aumento de temperatura, que chamamos de hipertermia. O que o organismo faz para tentar equilibrar? Primeiro, faz uma vasodilatação periférica, para fazer a troca de calor. Tanto que percebemos que as pessoas ficam com um aspecto avermelhado, um mecanismo para ter essa troca de calor com o ambiente. Em seguida, o corpo aciona as glândulas sudoríparas para você fazer essa troca de calor pelo suor.” Se o trabalhador recebe calor de outra fonte, como nos casos de Dimas e Jaime, essa troca vai ser muito maior e a dificuldade de equilibrar essa troca, também é proporcionalmente maior.
Para ajudar nesse processo, o profissional precisa repor o líquido, os sais minerais, como o sódio, o cloro, entre outros. Então, o primeiro cuidado reforçado por Botelho é a hidratação, com água, sucos, vitaminas e até mesmo isotônicos. Até mesmo para ajudar na função renal, porque no calor, urinamos menos. Outro efeito das altas temperaturas no organismo é a perda de apetite. “Como precisa de menos energia para manter as funções do corpo, é necessário fazer uso de alimentos mais leves, como verduras, legumes e frutas. Frituras e comidas mais pesadas dificultam a digestão. Alimentos calóricos aumentam a quantidade de calor no corpo.”
O terceiro ponto destacado pelo médico é a pele. Quem trabalha diretamente exposto ao sol precisa utilizar roupas que ajudem a proteger. “Em alguns casos, até mesmo roupas com mangas compridas, mesmo que causem certo aquecimento, elas protegem do sol. O protetor solar é um amicíssimo. Deve ser usado nas mãos, inclusive. Ele previne não só a queimadura direta, mas também dos cânceres de pele.” Botelho frisa que é preciso seguir o exemplo de Alice e reaplicar o protetor, se possível, de três em três horas. “Mesmo na sombra estamos expostos à radiação indireta. O sol bate, reflete e vai para a sua pele. Isso acontece tanto em ambientes externos, quanto internos. Por isso, há a recomendação de reaplicação do filtro, evitando a ocorrência de problemas.”