Vítimas tentam superar traumas após episódios de violência
Tribuna ouviu três sobreviventes de assaltos violentos ocorridos em Juiz de Fora este ano; todos revelam restrições na rotina impostas pelo medo
Na memória, os gritos, o medo, a visão ameaçante de uma arma, a sensação de ter a vida por um fio. Passar pela experiência de um assalto deixa marcas. Às vezes, resta o medo da própria sombra. Mas, por outro lado, existe a alegria de ter sobrevivido. A Tribuna conversou com três juiz-foranos que passaram por experiências traumáticas com o objetivo de conhecer como seguiram e como pretendem seguir com a vida em frente. O primeiro deles é o comerciante que, há pouco mais de um mês, recebeu alta médica, depois de ter sido esfaqueado durante assalto, quando fechava o estabelecimento de sua propriedade no Bairro São Pedro, na Cidade Alta. A segunda é a mulher que estava com a filha de 8 anos no interior de um veículo Corolla e foi abordada por um assaltante armado, no Bairro Cascatinha, Zona Sul. As duas foram ameaçadas e obrigadas a abandonarem o veículo, que foi levado pelo criminoso. Por último, a filha do motorista de 50 anos assassinado com um tiro no pescoço num bloqueio montado por ladrões na BR-040.
Para a psicologia, o trauma é inerente ao ser humano. O primeiro deles é o próprio nascimento, uma vez que, para a vida seguir em frente, os bebês precisam vencer obstáculos. No caso de vítimas de violência, cada uma reage de maneira diferente ao lidar com seu trauma. Tudo depende da intensidade do estímulo traumático e da estrutura psíquica que cada uma tem para assimilar o dano emocional. De acordo com a psicóloga e professora do Centro de Ensino Superior (CES-JF), Vera Helena Barbosa Lima, o modo de encarar e superar o trauma é peculiar a cada vítima, porque depende de suas estruturas psíquicas. Assim, elas são atravessadas por reações diferentes.
“As pessoas que têm credo religioso partem para o místico, entendendo o episódio de violência vivido como um aviso. Seria como uma mensagem divina, mostrando que aquilo aconteceu daquela forma e que poderia ter sido de uma maneira pior. Há duas possibilidades de você compreender como o sujeito irá reagir diante de um trauma: uns vivenciam, adoecem, ficam deprimidos e passam a ter medo de tudo. Outros entendem que o que aconteceu serve para eles partirem para uma vida melhor. Alguns partem para a vingança e, enquanto não se vingam, não ficam satisfeitos. Isso depende de como o sujeito foi acometido pela violência e sua estrutura psíquica. Muitos partem para uma reação impulsiva e colocam a própria vida em risco ou de outros que estão ao redor”, ressalta a psicóloga.
Tempo de despertar
O comerciante Tarcísio Stiegert, de 61 anos, transformou a experiência que teve de frente com a violência numa chance de mudar de vida. No dia 14 de julho deste ano, ele foi surpreendido por dois ladrões, que entraram no bar de sua propriedade. Era por volta das 2h, e os criminosos usavam toucas ninjas. O proprietário primeiro foi ameaçado e depois agredido. Ele ainda teria tentado desarmar os intrusos, mas não conseguiu. Tarcísio foi golpeado com uma faca no abdômen por um dos bandidos. Em seguida, o outro ladrão se armou com uma garrafa de cerveja e bateu com ela no rosto do comerciante. Depois da violência, a dupla fugiu com R$ 500. A vítima deixou o hospital em 18 de julho, depois de passar por uma cirurgia e vencer o estado de gravidade no qual se encontrava. Ao lado da família, Tarcísio agora quer parar de trabalhar, para ter mais tempo para aproveitar a vida.
O bar ainda permanece fechado, e a intenção é alugá-lo. “Na verdade, tudo aconteceu para eu entender que já devia ter parado com esse trabalho e acho que estava esperando que algo assim acontecesse para eu parar de vez, já que a idade está avançando. Eu já era aposentado e insistia em continuar trabalhando e, agora, vou me aposentar de fato”, afirma o futuro ex-comerciante, que é muito querido no bairro.
Ele conta que, quando viu os dois assaltantes, ficou assustado, principalmente quando percebeu que estavam com a faca. “Agi no impulso e tentei revidar, achei que iria morrer mesmo. Não foi heroísmo, reagi no impulso de sobrevivência. Só fui entender que estava ferido na UPA, pois não senti nenhuma dor na hora, tamanha a adrenalina. Só quem passa por isso consegue entender.” Ele ficou cinco dias internado e, junto com a família, tem encarado bem a situação. “Não ficamos com medo, mas temos que nos precaver, pois a violência está em todo o lugar. Adotar medidas de precaução e orar muito, pedindo proteção. Acendeu o sinal para eu dar uma parada e descansar”, diz com alegria por ter sobrevivido.
Nascimento de uma nova pessoa
A dona de casa, de 49 anos, que prefere não ter o nome divulgado, tenta retomar a vida normal, mantendo os mesmos compromissos, mas com a vigilância redobrada. Em 17 de abril deste ano, ela e a filha, 8, foram rendidas e tiveram um Toyota Corolla roubado no Bairro Cascatinha. Houve perseguição e troca de tiros com a Polícia Militar na região Norte. O carro acabou sendo recuperado após o bandido se chocar contra o portão de um sítio. Apesar das buscas, o assaltante se embrenhou em um matagal e conseguiu escapar. Ele ainda roubou a bolsa da vítima com R$ 1 mil, cartões bancários e documentos.
Apesar de toda confiança em dar a volta por cima, ela sente que algumas coisas mudaram. “Se alguém me abordar num sinal, fico apavorada. No local onde aconteceu, ainda não consigo passar e desvio, porque sempre vem aquele flash na minha mente.” A dona de casa encara a experiência que viveu como uma mensagem divina. “Me sinto muito agradecida de certa forma e chego a orar pela pessoa que me assaltou, pedindo a Deus por ela, porque meu caso terminou bem, apesar de tudo. Ele me abordou de maneira violenta, armado. Minha filha já estava no banco de trás com o cinto. Ele me mandou tirar a menina do carro e entregar a chave e a bolsa. Na verdade, me sinto agradecida de ele ter feito dessa forma, pois poderia ter sido diferente”, avalia.
Conforme ela, a criança, como estava dentro do carro, não viu o que estava acontecendo. “Na hora, eu fiquei em choque e não acreditei que era real, pensei até que fosse uma brincadeira, mas quando a ficha caiu, abri a porta do carro e vi que minha filha estava com o cinto, eu disse: tira esse cinto e desce, pois precisamos voltar. Ela não quis sair, porque não entendeu o que estava acontecendo. Eu precisei falar firme e dizer ‘saí do carro agora e mamãe explica depois’. Assim que eu a puxei, ele entrou no carro e deu partida. Essa ação aconteceu em menos de cinco minutos. Minha filha só deu conta quando viu que o veículo estava indo embora sem a gente. Ela ficou preocupada com o material escolar dela que estava dentro.”
A garota passou por orientação psicológica e não ficou com trauma. “Pensei que minha vida e da minha filha estavam em risco. Na hora foi muito rápido e não conseguia pensar em nada. O depois que é difícil, pois fica uma sensação muito ruim, pois você pensa o que poderia ter acontecido e o que fazer se ocorrer de novo, como vou reagir. É uma sensação de completa vulnerabilidade”, diz a mãe. Para essa mulher, agora, o caso é a oportunidade de uma nova compreensão de vida para ela e para o autor do crime. “Penso que talvez seja a providência divina dizendo para essa pessoa que ela tem que mudar de postura na vida, tendo uma oportunidade de ser uma pessoa melhor. Comigo, penso que poderia ter sido pior e não foi.”
Família tenta se reerguer após morte violenta do pai
Neste mês, A.P., que prefere ter o nome preservado, completa sete meses sem a presença do pai na sua vida. Ele tinha 50 anos quando morreu baleado num bloqueio montado por assaltantes na BR-040, na noite do sábado, 7 de janeiro. O crime aconteceu na altura do km 779, próximo à área de ocupação conhecida como Afeganistão e à Vila Esperança I. A vítima conduzia uma Saveiro, quando foi surpreendida pela barreira formada por troncos e galhos de árvore na pista sentido Belo Horizonte/Rio de Janeiro. A.P. conta que, na sua cabeça, ainda passam flashes das tentativas de manter a vida do pai, estancando o sangue com as suas mãos até a chegada do socorro. Aquele dia, que era de passeio, de descanso da família e que tinha rendido diversas fotografias em Chapéu D’Uvas, terminara de maneira que nunca tinha imaginado.
“Estávamos voltando e, quando passamos por uma curva fechada, nos deparamos com um carro atravessado na pista. Meu pai teve que parar e, quando olhei, vi o revólver apontado para ele. Pedi para ele acelerar. Em seguida, só ouvi meu tio que estava na frente junto com ele gritando: mataram o Antônio. Antes do tiro, meu pai chegou a destravar a porta do veículo, e acho que isso assustou os assaltantes, e um deles atirou. Ele foi baleado dentro do carro. Eu pulei para o banco da frente para tentar ajudá-lo e minha filha ficou com a outra passageira chorando”, relembra A.P.
Ela teve que assumir a criação do irmão, de 14 anos, depois da perda do pai e ainda se diz traumatizada. “Não posso ver gente correndo que fico em pânico. Um tempo depois do assalto, eu estava em um ônibus, quando um galho de árvore bateu, logo pensei que era tiro. Tenho medo de dormir em casa sozinha, de acontecer de novo, de andar no carro do meu pai. Durmo com a porta do meu quarto trancada junto com minha filha. Meu irmão não deixo na rua, pois tenho medo de que, por meio das redes sociais, os autores do crime ainda possam localizá-lo. Peço para ele não conversar com desconhecidos na internet”, desabafa.
Ela precisou fazer o reconhecimento dos autores do crime e diz que jamais irá esquecer o rosto deles. “Ficamos na frente deles e da família deles. Eram três adolescentes e um maior. Durante a audiência, eles tinham o apoio dos familiares que até lanche buscaram, mas nada disso posso fazer para o meu pai. Como ficamos frente à frente com eles, temo que possam nos reconhecer e ainda fazer alguma coisa contra nossa família. Nós não tivemos nenhum tipo de assistência. Com a morte do pai, tive que ficar com meu irmão sob minha responsabilidade e, logo depois da morte, começaram as aulas com a compra de material escolar, e tudo ficou para mim, que ainda tenho que cuidar da minha filha de 1 ano. Nenhum órgão me procurou para oferecer ajuda”, revolta-se.
Na primeira semana após a morte do avô, a garotinha ficou muito agitada, conforme a mãe. “Ela tinha ele como pai, o chamava de pai, pois ele ia buscá-la na creche. Hoje ela ainda pergunta sobre o avô. A gente fala que está no céu, e ela diz que o vê e que ele cuida dela. Ela aponta para o céu e diz: aquela estrelinha é meu avô. Isso ainda dói muito.”
Tempo de luto e de recolhimento
Quando a violência ainda é muito recente, as vítimas não gostam de exposição, preferem ficar mais recolhidas, o que explica algumas preferirem a não divulgação de nomes e fotos. Segundo a psicóloga Vera Helena Barbosa Lima, essas pessoas ainda sentem medo e passam pelo luto, que é o período que têm para assimilar a perda. “Na medida em que o tempo vai passando, aumenta-se a saudade, por exemplo, do ente que foi perdido, mas a pessoa já começa a falar, a lembrar, com uma outra força. No caso do medo, elas sentem que pode haver uma represália”, explica a especialista.
Ela ainda pontua que o medo que já existe nas pessoas as impede de fazer muitas coisas e as defende. Todavia, no caso das vítimas de traumas violentos, o medo pode aumentar de forma patológica, fazendo a pessoa até ficar paralisada diante da vida. “Hoje existe uma banalização da morte, mata-se por motivos banais, mas quando isso acontece com você, o modo de olhar para a situação é diferente. Quando o medo fica de uma forma intensa, impedindo a pessoa de sair de casa, de dirigir sozinha, ficando refém dela própria, é a hora que precisa de ajuda.
No caso das crianças, a forma de lidar irá depender também da estrutura psíquica e do aparato que conta, como a presença dos pais. “Se ela já vive uma estrutura familiar instável, que não protege, não cuida, esse trauma tem efeito diferente daquela que conta com toda essa estrutura, pois não tem onde recorrer. Mas é bom ressaltar que a criança ainda tem uma vida inteira pela frente e fica mais “fácil” a superação para elas do que para um adulto.”
Ações preventivas
A Polícia Militar, que trabalha com repressão, e, por isso é muito lembrada, quando o assunto são crimes violentos, tem preocupação com as vítimas e executa ações preventivas encaminhando dicas de segurança para a comunidade em geral, visando a autoproteção do cidadão. De acordo com a assessoria de comunicação da 4ª Região de Polícia Militar (4ªRPM), no caso das vítimas de crimes violentos, a PM faz pesquisas de pós-atendimento e também realiza visitas tranquilizadoras junto a essas vítimas. Além disso, a PM executa reuniões comunitárias, bem como conta com todos os seus policiais devidamente capacitados para esclarecer e dar dicas de autoproteção a qualquer cidadão.