Entrevista: Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista
Aos 63 anos, o líder indígena e ambientalista Ailton Krenak sustenta a mesma força que ostentava ao protagonizar uma das cenas mais marcantes da Constituinte de 1988, enquanto discursava aos deputados. Ele subiu à tribuna do Congresso Nacional e pintou o rosto com graxa de jenipapo como forma de protesto, expressando a dura realidade das tribos indígenas no país, ainda à margem de direitos. Quase 30 anos depois, na última quinta-feira, recebeu o título de Doutor Honoris Causa, outorgado pela UFJF a personalidades que contribuam para a ciência, a educação, as letras e as artes.
Pertencente à família Krenak, que é descendente dos Botocudos, Ailton vive hoje na região do médio Rio Doce, na Serra do Espinhaço. A aldeia fica hoje dentro de uma reserva localizada no município de Resplendor (a 440 quilômetros da capital mineira), abrigando aproximadamente 300 pessoas, número que, segundo ele, já chegou a duas mil pessoas no início do século XX. Hoje coordena a Rede Povos da Floresta e integra o Movimento Encontro de Saberes, responsável por levar à universidade o conhecimento tradicional, mais aproximado de práticas naturais. Em entrevista à Tribuna, o ambientalista, reconhecido nacional e internacionalmente, expõe a realidade do índio diante da necessidade de preservação de suas origens frente a uma pressão do mercado, a qual ainda coloca em risco os recursos naturais disponíveis.
– Tribuna – Recentemente, assistimos ao maior desastre ambiental do país com o derramamento da lama na Bacia do Rio Doce, próximo de onde vivem os Krenak. Que peso essa catástrofe tem sobre a preservação das famílias indígenas?
– Ailton Krenak – Desgraçadamente, isso afetou 600 quilômetros da calha de um rio que não é apenas um ribeirão. A lama deixou um rastro de destruição incalculável que não atinge somente aos índios, mas a todas as comunidades ao longo desse rio. São em torno de 1,5 milhão de pessoas afetadas. Há dez anos, a família Krenak foi convencida a se dedicar à pecuária leiteira. Com a assistência técnica da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e de outros profissionais, implantou cinco núcleos de manejo de gado leiteiro dentro da reserva, que abasteciam uma cooperativa em Resplendor. Com o derrame no rio, o gado está morrendo. A Vale e a Samarco cercaram o rio de uma margem a outra da reserva, num trecho de 19 quilômetros, para que o gado não chegue até o Rio Doce. Agora esse gado está confinado na parte seca da reserva. As famílias estão sendo abastecidas com caminhão-pipa, que passa duas vezes por semana na aldeia enchendo caixas d’água. Esses municípios ao longo do rio estão todos quebrados. É uma situação grave que afeta essa população. No caso da comunidade indígena, vai ser insustentável aquelas famílias permanecerem ali. É ridículo a empresa anunciar o pagamento de dois mil cartões benefícios, diante do tamanho da população atingida pelo desastre.
– Outra grande preocupação do movimento indígena brasileiro é a questão da demarcação de terras, que pode ser abalada com a transferência da responsabilidade do Executivo para o Congresso através da PEC 215. Que impactos isso pode trazer para os povos indígenas?
– Ela impacta de maneira diferente povos indígenas. Esses que estão em área de colonização antiga no Sudeste não vão fazer muita diferença, porque são regiões onde as áreas são diminutas. O alvo da PEC 215 são as grandes extensões de áreas naturais, do Centro-Oeste para cima, principalmente na Amazônia, onde a disputa por recursos naturais e pela biodiversidade já virou uma guerra no mercado. Estão visando à água, às florestas, talvez à mineração. A tendência dessa PEC é tratar o povo indígena como um “anexo”, como diz um especialista da Federal do Amazonas, Gersem Baniwa. Ele alerta que a população indígena está hoje na mesma situação que estava na década de 1950 a 1960, em vias de extinção. Além da PEC, o novo Código Florestal contribui para a retomada das terras pelo agronegócio.
– Como o Estado brasileiro vê hoje a situação dos povos indígenas?
– Temos hoje uma população estimada em 700 mil, e o IBGE, no último censo, chega a aproximar a um milhão de pessoas no país inteiro. O que importa é que o Estado brasileiro nos últimos dez anos passou a fazer uma política claramente hostil a essa parte da população e sua demanda por território e por assistência. Tanto que, devagarzinho, eles estão extinguindo a Funai. Ela deixou de ser uma fundação respeitável e passou a ser uma agência que vive pedindo esmola. A nomeação dos seus diretores e presidente era feita de uma maneira criteriosa, agora virou uma jogada política. Os deputados nomeiam os cargos, virou uma bandalha. A política de assistência aos índios no Brasil todo também tem qualidade diferente em cada região. Mostra, na verdade, que a vida política, no país inteiro, está deprimente. Com as comunidades isoladas, é pior ainda. É como favela. A violência é muito pior.
– Na luta política que o senhor trava desde a década de 1980, critica o modelo econômico o qual classifica como “predatório”, prejudicando fortemente a preservação do meio ambiente e da cultura indígena…
– Entre o período da Constituinte de 1988 até a virada do século, o Brasil mudou demais. Se naquele tempo, o termômetro ainda não era sentido pelo resto do povo brasileiro, os índios já sentiam a pressão. O que eu vi ao longo dos últimos 30 anos é que essa invasão sobre a vida das pessoas se espalhou sobre o território inteiro, e hoje ela atinge comunidades como essa de Bento Rodrigues, em Mariana, que foi soterrada e outras comunidades, como as do Xingu, com Belo Monte, e outras que estão na rota desse mineroduto, gasoduto e empreendimentos de infraestrutura pesada, deslocando famílias, arregaçando com o meio ambiente de maneira avassaladora. Naquele tempo, a gente achava que as agências reguladoras estavam sendo estruturadas para defender o interesse comum, mas, na verdade, estão totalmente controladas por estes empreendedores. A forte conexão que existe entre as pessoas eleitas para mandatos parlamentar e no Executivo, com essas empresas que financiam essas campanhas. O mercado não tem limites, vai comer até o último igarapé que nós tivermos de água limpa. E se a sociedade não se levantar, vamos acordar todos os dias com um derrame igual a esse do Rio Doce. É um descontrole.
– O que um título como o de Doutor Honoris Causa representa para esta luta?
– A Universidade me honra muito pelo sentido coletivo que o título tem. Reconhecendo a minha biografia e, de certa maneira, validando a luta que a gente teve até aqui, desde a Constituinte de 1988. Estou falando com você (por telefone) de um endereço que é dentro da Reserva da Biosfera da Serra da Serra do Espinhaço. Lutamos durante cinco anos, trabalhando uma proposta e obtivemos o reconhecimento da Unesco, da relevância desse patrimônio para a humanidade, para ter esse protocolo da Unesco. Esse reconhecimento me dá ânimo e a todos os coletivos que eu integro para a gente continuar na batalha. Pode ser uma ingenuidade a gente achar que vamos ser mais ouvidos do que antes, mas a gente tem que continuar. Não temos outros caminhos.