Mãe conta saga para matricular filho com deficiência em escola particular
Mesmo com igualdade assegurada por lei, mulher enfrentou dificuldades ao tentar vaga em pelo menos três instituições
“Desde que o Antônio (6 anos) nasceu, a bandeira da inclusão e da diversidade virou uma missão de vida para mim. Foi preciso eu ter um filho com deficiência para poder abraçar essa causa”, desabafa a jornalista Simone Motta, ao contar a saga enfrentada nas últimas semanas para conseguir matricular seu filho em alguma escola particular de Juiz de Fora. “Virou uma missão para mim, então eu gosto de expor o que a gente passa, as nossas dificuldades, para as pessoas conhecerem, se alertarem, abrirem os olhos e também abraçarem a causa.”
Antes de conceder essa entrevista à Tribuna, Simone usou as redes sociais para divulgar uma mostra de como os responsáveis por crianças com deficiência ainda enfrentam burocracias e desculpas na hora do acesso escolar. “As instituições não podem encontrar brechas na lei e maneiras veladas de negar uma matrícula.” A jornalista esteve em cinco escolas. “Na primeira, eles sabiam que o Antônio tinha síndrome de down, porque eu já tinha falado, e até aí tudo bem. Mas quando eu disse que ele tinha uma deficiência intelectual moderada e que o processo de alfabetização estava atrasado, o diretor falou comigo que eu deveria ir para um colégio menor, porque seria melhor para ele, porque na escola dele a turma era muito grande, e o Antônio poderia não ser incluído e ficar só com o professor de apoio.”
Indignada com o posicionamento do docente, que deveria atuar de forma a incentivar a inclusão, a jornalista ainda contestou que turma grande não seria o problema, porque o menino estava ali justamente para se socializar com outros estudantes. “O processo de inclusão não é benéfico só para o Antônio, é sobretudo para as outras crianças que aprendem a acolher o diferente.” A mãe ainda escutou que o “conselho” era baseado na experiência escolar do diretor. “Trajetória que não tem cidadania e nem empatia. Ele ainda citou outras duas escolas que seriam melhores para o meu filho, sem nem ao menos conhecê-lo. Não negou claramente a matrícula, porque sabe que é crime, mas tentou de artifícios para me induzir e sugerir outras escolas, deixando muito claro que, naquela, o Antônio não seria incluído e não seria bem-vindo.”
O direito de igualdade no acesso à educação para crianças com deficiência é baseado em diversas leis, entre elas Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A regra vale para todas as instituições de ensino, sejam públicas ou privadas, em qualquer nível ou modalidade de ensino. De acordo com o artigo 8º da lei 7.853/89, constitui crime punível com reclusão de dois a cinco anos e multa “recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência”. A redação é baseada na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência), “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.
Cotas e profissionais de apoio limitados
A história se repetiu na segunda instituição de ensino visitada por Simone. “Foi bem recomendada. Mas também sem conhecer o Antônio, o diretor falou que lá eles tinham uma cota para criança com deficiência, porque a demanda era muito grande, senão iria virar uma escola especial. Eu disse que era crime, que não poderia negar matrícula para o meu filho, pois já havia dito que tinha vaga para o primeiro ano. Não existe isso de cota.”
Ao perceber que a mulher conhecia a legislação, o docente complementou, segundo ela: “Apelamos para o bom senso dos pais porque, se colocarmos mais de dois alunos com deficiência em uma sala, com mediadores e profissionais de apoio, a turma fica muito cheia, e não fica um serviço de qualidade para os pais, os profissionais e as crianças típicas.” Para a mãe, essa foi a forma encontrada de dizer: “Seu filho atrapalha”. “Achei um absurdo. Se a turma está grande, divide em duas. A criança não é um empecilho, não pode ser um desafio e não existe lei de cotas para instituição de ensino. Não é um mercado de trabalho.” Também teria sido sugerido a ela arcar com o profissional de apoio, contrariando novamente a norma. “Ele disse que havia brecha na lei e, no fim, disse que poderia matriculá-lo. Ou seja: negou a matrícula de forma velada e com todos os argumentos para dificultar. Percebi que meu filho não era aceito.”
No seu primeiro dia de mandato como presidente em 2023, Lula assinou o decreto 11.370 (extinguindo o decreto 10.502, de 2020), que estabeleceu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. De acordo com a nova gestão, o decreto extinto “segregava crianças, jovens e adultos com deficiência, impedindo o acesso à educação inclusiva”.
Na terceira tentativa, a jornalista, mesmo se certificando de haver vaga na instituição, esbarrou em burocracia ao chegar na secretaria e questionar como seria a inclusão para seu menino com síndrome de down. “Não deixaram eu fazer a matrícula, antes de conversar com a diretora. Não me passaram informação de mensalidade, nem disseram que ele seria bem-vindo. Realmente a diretora entrou em contato, foi muito simpática, mas disse que a clínica onde ele faz atendimento poderia disponibilizar o profissional de apoio. E não é isso que a lei diz: é a instituição quem tem que ter o profissional de apoio, porque é alguém da pedagogia, que vai fazer um plano de desenvolvimento individual, de acordo com as limitações dele.” No entanto, como na visita anterior, a mãe revela ter ouvido que ofereciam um profissional de apoio para duas pessoas e que haveria uma cota.
Em um quarto colégio, Simone conta ter sido bem recebida mas, de fato, não haveria vaga. “Falaram que ele seria bem-vindo, mas havia lista de espera. Tirando essa, as outras três fizeram de tudo para dificultar a matrícula e o atendimento.”
Desabafo nas redes sociais e final feliz
Cansada da peregrinação, a jornalista postou sua saga nas redes sociais: “(…) A fé morreu, mas a esperança não. Amanhã seguirei na luta de encontrar uma escola inclusiva e acolhedora. Ela não precisa ensinar tabuada, orações subordinadas ou leis de Newton ao meu filho. Ela só precisa dizer com sinceridade real e amor: Seja bem-vindo, Antônio. Aqui você é muito querido.” Por fim, ela ora: “Meu Deus e meu Senhor, mais inclusão por favor.”
As preces foram atendidas e, na última quinta-feira, Simone teve a recepção pela qual esperava desde o começo. “Conseguimos no Colégio do Carmo. Recebi uma ligação dizendo que lá tinha vaga e que o Antônio seria muito bem-vindo. Fomos super acolhidos. Falaram que é um desafio aceitar uma criança com deficiência, e eu sei que é. Sou muito pé no chão. Mas estavam dispostos, e era isso o que eu queria. Minha pretensão não é ele sair alfabetizado, mas poder se socializar com os amiguinhos e se sentir querido. Ele vai começar lá, e estamos muito felizes.”
Simone destaca não ter citado o nome das escolas por onde passou porque quer apenas contar sua experiência, na expectativa de jogar luz sobre o aparente descaso e de ajudar outros responsáveis que possam vir a experimentar situações semelhantes na hora do acesso à educação para a pessoa com deficiência, já que o que está escrito, nem sempre é cumprido. “Minha intenção foi cutucar, movimentar e chamar a atenção para a nossa luta. Milhares de mães e pais enfrentam isso todos os dias, mas não conseguem ter voz. Sou privilegiada por ter uma rede social, amigos e jornalistas. Tenho que usar esses meios para poder gritar.”