Famílias contam o drama da rápida evolução da febre amarela
Pessoas que perderam familiares para a doença revelam como se deu o diagnóstico e mostram indignação diante das informações desencontradas
A divulgação de 18 casos confirmados de morte por febre amarela na cidade e na região reforça o estado de alerta da população em relação à evolução e à gravidade da doença. Por trás dos números, porém, há famílias profundamente afetadas pela perda de um ente querido para uma patologia que, até o início de 2018, não era considerada prioridade no roll de ações das secretarias de saúde de todo o país. Surpreendidos pelo retorno e surto da doença e pelas recentes mudanças nas orientações em relação à imunização da população, filhos se despedem de pais que até tentaram se vacinar, mas foram impedidos pela idade. É o caso de Abelarde da Costa, 64 anos, falecido no dia 18 de janeiro. Morador da Zona Rural de Maripá de Minas, localidade que fica a 54 quilômetros de Juiz de Fora, ele procurou um posto do seu município para se imunizar no final de 2017, mas saiu de lá sem a dose da vacina, diante da orientação de que idosos não podiam ser imunizados sem recomendação médica.
“Sinto um vazio imenso. Eu acordo pensando nele e durmo pensando nele. Ainda acho que vou chegar a Maripá e ver meu pai. Não tive tempo de cair a ficha”, revela, emocionado o técnico de patologia clínica Giovane da Costa, 34 anos, morador de Juiz de Fora e um dos quatro filhos do homem que manteve sua família com o esforço da enxada.
Abelarde ganhou a vida na roça, criando gado, e, há cerca de quatro anos, havia sido aprovado em um concurso público municipal. Na função de encarregado, o servidor público continuava a realizar trabalho braçal. Nunca fugiu de serviço. Morreu faltando pouco mais de um mês para completar 65 anos. Como já tinha dado entrada na aposentadoria, ele estava ansioso pelo momento de poder dedicar-se ao sítio onde criou os filhos. Entre os planos que acalentava para a nova fase da vida estavam a construção de um poço de peixes na propriedade rural, de uma sonhada piscina de água natural e de um chafariz para presentear a esposa Marina, com quem estava casado há 40 anos.
Os projetos começaram a ser desfeitos no dia 13 de janeiro, um sábado, quando Abelarde apresentou dores pelo corpo. Como não se queixava de nada, ele mesmo não deu importância ao que estava sentindo. Naquele mesmo dia, matou um porco para ser preparado e colocado na lata, como os filhos gostavam, embora tenha demorado mais do que de costume. À noite, a esposa foi tomada de surpresa ao encontrá-lo na cama ardendo em febre. No próprio sábado, ela arrastou o marido para o médico ainda em Maripá. Lá, ele foi diagnosticado com um resfriado forte. Marina fez sopa, ofereceu leite quente e antitérmico, mas ele piorou. Levado para o hospital em Bicas, no domingo, a equipe de saúde suspeitou de dengue. Lá, ele foi hidratado com soro, retornando para casa. Na segunda-feira e sem uma boa evolução, Abelarde retornou a Bicas. Saiu do atendimento médico com uma receita de medicamento para coceira, já que dengue causaria esse tipo de sintoma.
Na terça-feira, ele continuou passando mal. Na quarta-feira, dia 17 de janeiro, o quadro geral dele piorou. Abelarde apresentou falta de ar. Na manhã de quinta-feira, Marina resolveu acionar Giovane em Juiz de Fora. Como o marido continuava com muita febre e dificuldade respiratória, ela pediu ajuda médica. O Samu foi chamado, e o técnico em patologia clínica orientou a mãe a direcionar o pai para a Santa Casa, em Juiz de Fora, onde ele havia conseguido uma vaga pelo SUS. Naquele momento, Giovane não fazia a mínima ideia da gravidade da situação. Ninguém fazia. Os profissionais de saúde do Samu precisaram estabilizar o paciente para a remoção até o hospital juiz-forano. Quando a ambulância estacionou na Santa Casa, o filho Giovane apressou-se em abri-la. Levou um susto:
“Vi uma pessoa sudoreica, muito rebaixada, com muita falta de ar, as extremidades muito roxas. Naquele momento, assustei. Ele olhou para mim e não conseguir falar nada, apesar de estar consciente”, relembra Giovane. Como não havia vaga no CTI, ainda, o paciente foi direto para a emergência, onde precisou ser entubado. Através do tubo, os médicos perceberam que havia sangue, indicando hemorragia interna. Descartaram a dengue hemorrágica por causa do exame negativo para a doença. O infectologista Guilherme Côrtes foi acionado e, pela primeira vez, a hipótese de febre amarela foi apontada. Com a pele ictérica, Abelardo foi submetido a novos exames que apontaram uma hepatite fulminante e insuficiência renal. O pulmão também apresentava focos de hemorragia.
Poucas horas depois, o pai de Giovane teve uma parada cardíaca de 12 minutos. Foi reanimado, mas havia pouca esperança. “A equipe me informou: seu pai está pronto para outra parada. Se ele parar de novo, não terá chance. Quarenta minutos depois, ele parou. A gente que trabalha com isso sabe. O pessoal da saúde foi chegando e depois foi saindo. Ali ele já tinha ido embora. Partiu às 14h04”, contou Giovane, ainda abalado pela perda recente.
Para Giovane, a mãe dele e os irmãos fica uma saudade que cresce a cada dia. “Dói demais a saudade. Ele era um pai muito presente que nos amava do jeito dele. Passava esse amor no olhar e no jeito de nos tratar. Criou quatro filhos sem luxo, mas com valores. Como, em pleno 2018, perdemos pessoas por febre amarela? É revoltante. O governo continua no escuro em relação a essa doença. As mesmas pessoas que me falaram que a minha vacina de oito anos atrás não valia mais, e que eu teria que tomar de novo, são as que agora dizem que a dose está valendo e que a dose fracionada também tem efeito. Estamos nas sombras”, queixa-se.
Fazendeiro que perdeu a vida tentou se vacinar
A gerente de marketing Sabrina Côrtes Fonseca Pivari, 39 anos, tem a mesma sensação de Giovane. O pai dela, João Paulo Sales da Fonseca, 64 anos, faleceu por causa da doença no último dia 28 de janeiro. Morador de Piau, ele conseguiu imunizar os funcionários da sua fazenda, mas também foi impedido de se vacinar. A primeira tentativa foi no primeiro semestre do ano passado, quando disseram que ele que não poderia receber a dose por ter mais de 60 anos. No final de 2017, a equipe do posto de saúde foi até a fazenda de João Paulo. Os empregados foram imunizados, mas, ele, não. Novamente a idade foi apontada como empecilho.
Avô e pai, o fazendeiro passou a existência trabalhando na área rural. Apaixonado pelo campo, ele transmitiu para os filhos e netos a paixão pelos cavalos e pela vida simples na fazenda. Visitar o avô era o programa predileto dos netos de 4 e 6 anos.
Uma semana antes de morrer, João Paulo começou a sofrer de fortes dores de cabeça. A febre veio logo depois. Na terça de manhã, às 5h, ele levantou, preparou o café, levou os funcionários para a fazenda e, mesmo sentindo mal-estar, deixou as garrafas térmicas no curral, como fazia diariamente. No mesmo dia, o fazendeiro deslocou-se no seu carro para Juiz de Fora, dirigindo por 50 quilômetros. Foi até a Santa Casa, passou pelo clínico, que o encaminhou para o infectologista, que constatou nos exames alteração significativa nas taxas que medem as funções do fígado. Na própria terça, ele foi internado em função dos sintomas e da rápida elevação das enzimas hepáticas (TGO), que passaram de cem para nove mil em menos de 24 horas.
Na manhã de quinta-feira, a taxa já tinha alcançado o patamar de 39 mil, o que indicava uma hepatite fulminante. Mesmo com essa rápida evolução, João Paulo ainda estava lúcido e orientado. Com a queda na saturação do oxigênio, ele apresentou tonteira e precisou ser levado para o CTI. “Estava ficando muito difícil para ele. Neste momento, ele já estava tomando várias providências: anotar a senha do banco, assinar a demissão de um dos funcionários. Não sei se ele sabia que ia morrer, mas percebeu que estava piorando muito rápido. Logo após acabar de assinar o que queria, foi para o CTI. Na madrugada, o entubaram e sedaram. Na sexta e no sábado, ele fez hemodiálise, as taxas começaram a recuar, mas já estava com falência dos órgãos. No domingo, 9h45, ele faleceu no CTI”, lamentou.
Para Sabrina, a febre amarela é uma doença que se transformou sem que a sociedade estivesse preparada para isso. “Em momento nenhum os médicos deram esperança. A doença é muito complicada. Quando ele internou, eu estava de férias no Rio e quis voltar. Meu irmão disse para eu esperar. O médico, no entanto, falou com ele que nos avisasse para voltar. As pessoas acham que nunca vai acontecer com elas. Ainda não dá para saber do que estou sentindo mais falta. É muito pouco tempo. É um buraco que fica de uma vida cercada de amor e que nos faz muita falta.”
Especialista diz que faltou cobertura vacinal sólida em Minas
O Coordenador do Laboratório de Referência Nacional de Dengue, Febre Amarela, Zika, Chikungunya, West Nile e outras arboviroses, o médico pesquisador Pedro Vasconcelos, vê com preocupação a atual situação de Minas Gerais. Vasconcelos classifica de surto os casos registrados no estado. Segundo o sorologista, o que normalmente a ciência epidemiológica considera como surto é a ocorrência de casos em um local onde previamente não havia nenhum. Para o médico que dirige o Instituto Evandro Chagas, Centro Colaborador da OMS/OPAS para Pesquisa e Referência em Arbovírus, a situação poderia ter sido evitada, principalmente porque Minas Gerais tinha recomendação de vacinação em todo o seu território. “Se tivéssemos coberturas vacinais sólidas, nós não teríamos esses casos nesse estado. Diferente do Espírito Santo e Rio de Janeiro, estados sem recomendação de vacinação e nos quais a velocidade de dispersão do vírus foi muito grande, em Minas, houve falha na cobertura vacinal, mas não é o momento de buscar culpados e sim de avaliar e corrigir para evitar episódios semelhantes”, aponta.
O pesquisador reconhece a falta de estudos no mundo que apontem o tempo de duração da proteção conferida pelo sistema imune à pessoa vacinada, mas diz que a vacina é o meio mais eficiente de se proteger do vírus que causa uma grave doença e mata. Em relação à população idosa, a recomendação do virologista é a vacinação de pessoas que residam em áreas de risco. O médico explica que o idoso pode se vacinar desde que sejam avaliados o risco e os benefícios que a vacinação vai trazer. “A vacina da febre amarela é produzida com o vírus vivo atenuado. Por isso, há possibilidade de pessoas com a maior suscetibilidade genética virem a desenvolver quadros graves de febre amarela. Isso nós descrevemos pela primeira vez no mundo, em 2001, em uma publicação que saiu no Lancet (jornal científico internacional), quando se começou a olhar a vacina da febre amarela com um outro olhar. Até então, a descrição era de uma vacina 100% segura e 100% eficaz. Ela continua sendo 100% eficaz, mas, com a segurança um pouco prejudicada por conta dos casos de pessoas que desenvolveram a doença vicerotrópica aguda grave, morrendo após serem vacinadas. Mas a gente acha que essas pessoas que adoeceram com a dose vacinal seriam pessoas que naturalmente, se infectadas, morreriam de febre amarela também. Elas têm uma pré-disposição genética. Um outro ponto a considerar é que uma das contra-indicações formais após a descrição desses casos de reação adversa são as pessoas com mais de 60 anos e, principalmente, as com mais de 70 anos. A vacinação desses idosos não é 100% contra indicada, porém é preciso que seja feita a avaliação por um médico. No entanto, pessoas entre 60 e 70 anos que moram em área com transmissão da doença podem e devem ser vacinadas se não tiverem nenhum problema de saúde, porque o risco é alto. Se a pessoa não puder se mudar temporariamente, seja por causa de moradia ou por causa de atividade laboral dela, e não tenha contra indicação formal, não deve ficar sem vacinar”, explica.