Entidade que abriga crianças da Aldeia SOS está irregular
A Associação Projeto Amor e Restauração (Apar) que assumiu, desde o início de setembro, em caráter emergencial, o atendimento a 20 crianças e adolescentes oriundos das Aldeias SOS, está funcionando de forma irregular há três meses. A entidade não possui inscrição no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), condição obrigatória para sua atuação. Além disso, a expertise da Apar para a prestação do serviço vem sendo questionada pelo Centro de Referência em Direitos Humanos de Juiz de Fora, em função do histórico da associação. Em 2012, ela teve o pedido de registro no conselho municipal indeferido, justamente por não trabalhar com crianças e adolescentes. Em maio de 2016, uma nova solicitação foi feita pela Apar junto ao órgão, mas o registro de inscrição ainda aguarda parecer da Comissão de Registro de Entidades.
Até 2015, a entidade mantinha contrato com a Secretaria de Estado da Saúde para tratamento de dependência química de mulheres adultas em uma comunidade terapêutica localizada na Estrada da Graminha, conforme site da entidade. No entanto, ela não teve o convênio renovado pelo Estado porque, segundo a Coordenação Estadual de Saúde Mental, foram encontradas, em novembro de 2015, irregularidades consideradas graves, “tanto no âmbito de violações de direitos humanos como no que tange à assistência a usuárias, ferindo as legislações reguladoras vigentes”, informou Humberto Cota Verona, da Coordenação Estadual, respondendo a questionamento da Secretaria de Estado de Direitos Humanos. O relatório informa problemas com alimentação insuficiente, estrutura física precária, além de práticas de constrangimento (ver fac-símile).
De acordo com o fundador e ex-presidente da Apar, o pastor Ernane Souza Silva, 65 anos, não houve irregularidades em relação à prestação do serviço junto à comunidade terapêutica e, sim, uma “determinação de Belo Horizonte de acabar com as comunidades terapêuticas, o que foi feito no estado inteiro. Sempre tivemos alvará sanitário e isso indica que cumprimos mais de 90% das exigências”, comentou. O fato é que a Apar não foi recontratada pelo Estado para dar continuidade ao serviço. Entretanto, nove meses depois do fim do convênio referente à comunidade terapêutica, a Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) de Juiz de Fora assinou com ela convênio que garante o repasse de R$ 465.368,40 por ano para que a associação realize atendimento na modalidade “abrigo institucional para crianças e adolescentes.” O valor do convênio, inclusive, é 33% maior do que o assinado com a Amigos Mãos Abertas para realização de ações inerentes ao Acolhimento Institucional de Crianças e Adolescentes na modalidade Casa-Lar, cujo valor estipulado em julho de 2016 com vigência de um ano, é de R$ 310.245,60, para o mesmo número de crianças. Em nota, a SDS afirmou que o convênio firmado com a Apar é de abrigo institucional, modalidade diferente do que existia com as Aldeias SOS, que era de Casa Lar. De acordo com a secretaria, a nova modalidade exige maior estrutura e mais profissionais em seu quadro técnico.
SDS diz que supervisiona entidade
A coordenadora do Centro de Referência, Fabiana Rabelo dos Santos, enviou ao prefeito Bruno Siqueira (PMDB) um ofício a respeito da execução dos serviços de acolhimento institucional do município em 23 de novembro, que incluía a situação da Apar. Ela diz, no entanto que, em relação à entidade, ainda aguarda uma resposta. No documento, obtido com exclusividade pela Tribuna, o Centro de Referência afirma que, na sua avaliação, a gestão municipal pode estar violando o Estatuto da Criança e do Adolescente ao credenciar entidades para atendimento sem inscrição nos Conselhos de Direito, sem considerar os conselhos enquanto espaços de deliberação de políticas públicas. A assessoria de comunicação da SDS afirmou que, no momento em que o convênio foi assinado, “não havia entidade credenciada nos CMAS e CMDCA para o serviço de acolhimento de crianças e adolescentes, obrigando a pactuação de um convênio com entidade sem esse credenciamento”. Disse, ainda, que supervisiona o trabalho da Apar, para garantir que os direitos das crianças e dos adolescentes sejam cumpridos.
Segundo Ernane, representante da Apar ao lado da esposa Maria Lúcia – que é a guardiã legal dos acolhidos -, há mais de 40 anos, ele trabalha ajudando pessoas, inclusive crianças, e que a realidade da assistência é bem diferente do que parece. “Quando fizemos o nosso estatuto, lá atrás, nós já tínhamos o intuito de ajudar crianças, porque o que faz a diferença é o amor. Nesses três meses de convênio, qualquer tipo de órgão verá que houve uma grande diferença na vida dessas crianças. As pessoas estão apegadas à letra, mas esquecem o que está sendo feito. Não entendemos como perseguição, mas como falta de conhecimento”, afirmou.
Apar alega dificuldades financeiras
A retirada das crianças que eram atendidas pela Aldeia SOS foi determinada pela juíza da infância e juventude Maria Cecília Golner Stephan após o recebimento de denúncias de violação de direitos cometidas contra os acolhidos. A Associação Projeto Amor e Restauração (Apar) acabou sendo indicada para assumir o acolhimento institucional do grupo e, com o conhecimento da Secretaria de Desenvolvimento Social, iniciou as atividades sem registro no Conselho Municipal dos Direitos da Criança (CMDCA). Na época, o secretário da pasta, Abraão Ribeiro, disse que o caráter de urgência não deixava outra escolha diante da dificuldade de encontrar uma entidade apta.
O fundador da Apar, Ernane Souza Silva, afirmou que o trabalho de acolhimento institucional conta com 17 funcionários e vem enfrentando dificuldades por atraso no repasse mensal de R$ 38 mil que deveria ser feito no quinto dia útil de cada mês. O pagamento de dezembro, por exemplo, foi feito ontem à tarde. Além disso, dos R$ 38 mil, R$ 4 mil são referentes ao repasse do Estado, mas há três meses não são pagos.
“Eu e a minha esposa chegamos à conclusão que não tem como fazer um trabalho dessa envergadura sem ter estrutura. A juíza da infância nos deu um tempo muito limitado para escolher um local e precisei vender meu carro para conseguir os R$ 20 mil do caução do aluguel de uma casa para poder bancar o trabalho. Falar em direitos humanos é muito fácil, mas venham passar o dia e a noite aqui para ver a situação. Quando a Prefeitura ficou 30 dias sem mandar um quilo de arroz para cá não veio ninguém dos direitos humanos. Estamos abertos para quem quiser conhecer nosso trabalho e ver a transparência dele. Mas digo uma coisa: se não houver uma mudança por parte deles (da Prefeitura) é quase impossível a gente levar à frente um trabalho desse nível.”
Procurada pela Tribuna para comentar a situação da Apar, a juíza da infância orientou o jornal a entrevistar o promotor da Infância e Juventude, Carlos Ari Brasil. No gabinete dele, no entanto, a informação é que o promotor não fornece informações sobre esses casos por uma questão de sigilo.