A rotina das mulheres atrás da catraca nos coletivos de JF
Valéria, Ana Caroliny e Nair são três das 282 cobradoras em atividade no município e dividem com a Tribuna seu cotidiano no transporte público
Elas acordam, se arrumam – nem sempre deixam o café preparado – e vão trabalhar. O ônibus sai. Só depois é que o sol nasce. Essa é a rotina de trabalho de Valéria Moreira da Silva, 53 anos, Ana Caroliny Cerino, 24, e Nair do Carmo Marciano, 57. Elas são cobradoras de ônibus, função que cada vez mais tem contado com mulheres no exercício da atividade. De acordo com o Consórcio Via JF, a empresa conta com aproximadamente 900 cobradores; desses, 282 são mulheres, ou seja, quase um terço da função é ocupada por trabalhadoras. Além disso, há seis motoristas mulheres.
Elas lidam diretamente com centenas de pessoas. Passageiros que vêm e vão nos coletivos em Juiz de Fora. Ainda assim, o tempo por trás da roleta faz delas figuras cativas da rotina daqueles que usam o ônibus regularmente. No caso das três, que trabalham em linhas de bairros específicos, os laços são ainda mais estreitados, uma vez que uma parte dos passageiros, assim como elas, está dia após dia no transporte urbano. Um já é parte da rotina do outro.
Ao acompanhar uma viagem com Nair, na linha 108, entre o Centro de Juiz de Fora e o Bairro Granjas Betânia, pude perceber a relação de proximidade entre ela, Martins – o motorista daquela linha – e os passageiros do bairro. Sempre que os lances de escada são superados, um sorriso no rosto antecede um bom dia animado ao ver a colega de todos os dias sentada no banco mais alto no ônibus. “Ela tem mais amizades no bairro do que eu que moro aqui há muitos anos”, me contou um dos passageiros. Em conversas com Valéria e Ana Carolina, elas contaram que o clima harmônico e de amizade com os passageiros é parte da rotina. Valéria atua na linha 140, do Bairro Santa Efigênia, enquanto Ana Caroliny, nos dias úteis, se divide entre o 701, Jóquei Clube, e o 710, Novo Triunfo.
Afeto diário
Valéria, que é mãe, conta que ficou amiga de um passageiro mirim. “Todo dia que ele entrava no ônibus com o pai, ele ficava me observando. Aí um belo dia ele correu e abraçou minha perna. Então eu falei: ‘me dá um abraço direito!’ A partir daí, todos os dias que ele ia para o colégio, ele me abraçava. Foi construída uma relação de amor mesmo.”
Quando bate a hora do almoço, no ponto final, lá no Bairro Campo Grande, Ana Caroliny costuma ganhar uma companhia agradável para comer. Um casal de idosos, passageiros do ônibus em que ela trabalha, acompanham a ela e ao motorista nessa hora sagrada. “Eles conversam com a gente, contam histórias antigas. É bem legal mesmo o contato que a gente tem com os nossos passageiros. Você aprende muita coisa”, diz Ana.
Há 15 anos na mesma linha, desde que começou a trabalhar no transporte público de Juiz de Fora, Nair já ganhou até festa de aniversário no Granjas Betânia. “Eu fiquei até sem graça, mas fui lá, teve churrasco e foi muito legal”, conta Nair. Além disso, durante a viagem no 108, além dos alegres cumprimentos e papos do dia a dia, a cobradora ganha lanches dos passageiros e é querida também na padaria do bairro, onde toma um cafezinho. “Gente boa demais”, falam passageiros e colegas de rotina de Nair.
Fora da curva
Mas nem sempre a paz reina. “Sempre tem um que gosta de causar tumulto no ônibus”, relata Ana Caroliny. Nesse segundo caso, lá vão elas, com o tato que lhes é próprio, tentar apaziguar o ambiente. Porém, há casos mais sérios e ríspidos, como os de pessoas que querem embarcar no ônibus sem pagar passagem. “Nesses casos, já fomos instruídas a não abordar esses tais, até mesmo por questão de segurança”, pontua Valéria.
O que sai do roteiro do dia a dia nem sempre são casos que têm confusões como pano de fundo, mas histórias que emocionam. Nair conta que uma vez foi responsável por salvar a vida de uma passageira que estava tendo um infarto dentro do ônibus. “Nesse dia tinha uma mulher me olhando com cara feia, me encarando. Pensei: ‘vou lá’. Ela estava do lado do marido dela. Perguntei: ‘a senhora está passando mal?’ Ela falou assim: ‘minha filha, eu tô infartando’. Aí eu falei com o motorista: ‘pelo amor de Deus, meu filho, acelera com esse carro’. Nós fomos para o HPS. O médico, quando voltou, falou: ‘ela tem que agradecer a vida dela a você, porque se você não tivesse visto, ela teria morrido dentro do seu ônibus'”, relata. Depois desse acontecimento, Nair relata que ficou experiente em observar essas situações. “Se tem uma grávida perto de ganhar, eu pergunto ao motorista: ‘você sabe fazer parto? Então acelera esse carro!'”, conta bem-humorada.
A ajuda a um cadeirante marcou Ana Caroliny. Segundo ela, era uma pessoa que não mora na cidade e estava desconfiada do elevador responsável por trazer as pessoas com deficiência para dentro do coletivo. “O motorista saiu do volante e testou o elevador, até que ele se sentiu confiante para subir. Ao entrar, ele pediu licença para a esposa dele, me deu um abraço e também abraçou o motorista.” O fora da curva também emociona.
A superação do machismo e o direito de trabalhar
Fora dos ônibus elas cuidam da casa, são mães (como Valéria e Nair), estudantes (caso de Ana Caroliny, que faz um curso de assistente administrativo), fazem “um extra” (Nair organiza excursões para viajar nos fins de semana), entre outras atividades que são de seus vínculos pessoais.
Já atrás da roleta, são trabalhadoras. E superam as adversidades para exercerem sua profissão. Nair conta que certa vez, quando trabalhava junto a uma mulher motorista, um homem se recusou a embarcar no transporte. “O homem estava com a esposa e disse que iria esperar o motorista. Quando ele viu que era uma motorista, ele começou: ‘o que é isso? Cobradora mulher que era para estar arrumando a cozinha está aqui. Agora motorista!? Ah não! Não vou nesse ônibus não, vou embora’. E não entrou mesmo”.
Uma outra vez, Nair relembra que, ao pedir o famoso “um passo para trás”, foi retrucada por um passageiro que a ameaçou. “Ele falou que ia dar uns tapas na minha cara. Quando ele terminou de falar, o pessoal colocou ele para fora do ônibus, eu não precisei nem rebater.” Para ela, agora as coisas vêm mudando. “Há mais aceitação.”
Além das ameaças, ser mulher também as faz temer os riscos de assalto e de sair de madrugada. Todas as três, como muitas e muitas outras, começam a trabalhar antes mesmo de o sol nascer. Ainda assim, as adversidades estão longe de ser impeditivo para que elas exerçam sua profissão. E mais: que o façam com amor. “É bem bacana você ser uma mulher empoderada, né? Nessa questão de você trabalhar e pagar suas contas. Quando eu trabalho, estou com meu dinheiro aqui, o que eu faço é pagar minhas contas. Hoje moro de aluguel, porque eu me separei há pouco tempo, mas estou conquistando as minhas coisas. Isso é importante”, ressalta, orgulhosa de si, Valéria.
‘Dia de entrevista’
Com sorriso no rosto, sempre, elas cortam Juiz de Fora dentro dos coletivos. Lutam pela independência financeira, garantem o sustento da casa, correm atrás do direito básico de exercer sua profissão. E se engana quem acha que elas não fazem falta. Acompanhando Nair, vi repetidas vezes perguntas preocupadas: “por que não veio?”, “aconteceu alguma coisa?”. Prontamente, ela respondia “foi dia de dar entrevista. Inclusive meu celular não parava de tocar!”. Era algo na rotina das dezenas de passageiros que estava faltando: os sorrisos largos, do outro lado da roleta, que prontamente devolvem o bom dia.