Trajetória pessoal ajuda estudantes a tirar nota mil na redação do Enem
Candidatas que tiraram nota máxima relatam como suas experiências de vida ajudaram no sucesso alcançado
Além das aulas, livros, exercícios e atualizações sobre questões contemporâneas, os estudantes que se preparam para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) contam com as próprias experiências para alcançar o resultado pretendido, ou até mesmo superá-lo. Foi assim com Bárbara Lima Silva, 19 anos, que tentava uma vaga no curso de medicina pela terceira vez (concorreu uma vez pelo Pism e outra pelo Enem), e Yuli Mendes de Souza, 20, que cursava enfermagem na UFJF e tentava uma vaga também no curso de medicina. Ambas contaram com suas próprias vivências para discorrer sobre a educação da população surda do país no texto dissertativo-argumentativo proposto nessa edição da prova de redação. Suas experiências de vida, aliadas a muito estudo, permitiram que as candidatas tirassem nota mil na redação deste ano. Em entrevista à Tribuna, elas contam a rotina de estudos que culminou no sucesso alcançado.
No caso de Bárbara Lima Silva, 19 anos, a escolha da temática foi surpreendente, mas não a paralisou. “Não achei que fosse ser um tema tão específico, principalmente para o público que é de recém-formado no Ensino Médio. Mas para mim, foi tranquilo falar sobre o assunto.” Bárbara e sua família são Testemunhas de Jeová. A irmã dela apoiava um grupo de fiéis que ajudava pessoas surdas a entenderem o texto bíblico. “Ela aprendeu a Língua Brasileira de Sinais, e eu acabei aprendendo um pouco também. Tive contato com surdos, com as dificuldades que eles enfrentam até mesmo para ter acesso a serviços públicos, como farmácias e Correios. Presenciei algumas situações e ouvi de intérpretes de escolas o que eles passavam no cotidiano.” O contato com essa realidade ajudou Bárbara a manter a calma na hora da prova. “Já tinha um bom treino relativo à estrutura do texto, somei a isso os argumentos vindos desse conhecimento de vida e consegui fazer um bom texto.” A junção do trabalho focado foi determinante para o resultado obtido. “Se tivesse só o conhecimento sobre o cotidiano dos surdos, não conseguiria tirar uma nota tão boa. Também é preciso saber desenvolver o texto de acordo com as regras que o Enem exige. Eles cobram diversos aspectos gramaticais, ortográficos, coerência, como utilizar argumentos de autoridade e a falar de maneira mais técnica sobre o assunto. Essas coisas precisam caminhar juntas.”
Yuli, natural de Além Paraíba, cidade que fica a 111 km de Juiz de Fora, também se surpreendeu com a escolha do tema. “Tinha chutado vários, mas realmente não imaginava nada parecido. Dentro dos assuntos que estudamos, acabamos fazendo algo sobre inclusão, acessibilidade, porém nada tão específico.” No caso dela, contou a vivência que teve ao lado da mãe, funcionária da Associação de Pais e Amigos de Excepcionais (Apae) de Além Paraíba. “Nasci e tive contato com essa realidade desde então. A convivência com as diferenças e a percepção da importância da educação inclusiva foram muito importantes para mim.” Ela esteve próxima da comunidade surda durante a infância. Mais tarde essa proximidade se perdeu, mas as impressões continuaram a fazer parte de seu repertório. Para ela, a limitação de tempo foi o maior dificultador da prova.
Por coincidência, a estudante participou de um aulão com um professor particular pouco tempo antes da avaliação. Eles fizeram uma revisão sobre todo o conteúdo e, dessa aula, saiu outro mote para a redação. “Ele falou sobre um cientista que teve paralisia cerebral e conseguiu crescer como cientista, mesmo com todas as suas limitações. Foi esse um dos pontos que eu trabalhei no texto. A deficiência não o impediu de ir além e se tornar um gênio. Assim como a surdez não deve ser impedimento para as pessoas chegarem ao nível superior de educação”, refletiu Yuli.
Dedicação e equilíbrio
Bárbara estudou no Colégio Apogeu desde o 6º ano do ensino fundamental. Nos três anos do ensino médio, ela teve acesso às matérias que caem no Enem, mas o foco estava no Pism. Porém, como não atingiu o objetivo da aprovação em Medicina pelo programa da UFJF, Bárbara retomou os estudos no ano passado para tentar o Enem. As aulas no colégio iam de 7h20 a 13h30. À tarde, após um breve descanso, seguia com os estudos até por volta das 21h. “Para a redação, tive aulas com o professor Wesley Pontes, que foi quem me ensinou a escrever. Depois, com a professora Josiane Alves, acertei algumas arestas. Consegui concentrar a atenção aos detalhes e aos erros pequenos que eu não conseguia corrigir sozinha. Também busquei ajuda especializada com um professor de matemática.”
Bárbara ainda se dedicou à leitura da Revista Radis, distribuída pelo Governo, indicação de um professor, além de assistir documentários que ajudavam a ampliar o conhecimento de mundo para a formulação do texto. Além disso, ela não se descuidou da saúde mental. “Muita gente acha que vestibulando não pode parar de estudar, mas o descanso é fundamental para que o tempo de estudo seja de qualidade. Eu sempre tirava tempo para minhas atividades favoritas, que não estavam diretamente relacionadas ao vestibular, como ver séries e sair com amigos. Só com o equilíbrio conseguimos manter a rotina de estudos.”
Yuli diz ter lido muito mais material que nas tentativas anteriores. “Tentei me manter informada, e conciliei os estudos de outras matérias. Se via algum assunto que pudesse render em história, ou geografia, por exemplo, anotava em um caderno para escrever. Cheguei a listar cerca de 50 temas. Para cada um, tinha um conjunto de informações. Quando escrevia os textos usando os dados, acabava gravando. Foi um jeito de aumentar meu repertório, melhorar minha argumentação”, contou. Yuli optou por estudar em casa, sem o suporte dos cursos pré-vestibular, e só contou com o apoio de uma professora particular para a redação. Nos primeiros meses da preparação, ela fez uma revisão teórica das matérias, depois se dedicou à resolução de exercícios e ao treinamento para a prova. Na reta final, buscou se debruçar sobre a redação, aumentando o volume de produção de textos.
“Eram de 3 a 4 textos por semana. Nos exames feitos anteriormente, minha média ficava na casa dos 800. A redação sempre foi um problema para conseguir realizar meu sonho, que é fazer Medicina. Por isso, me esforcei tanto. Mas esperava fazer no máximo 900 pontos, porque achei que tinha me enrolado um pouco. O tempo de prova era muito curto e eu queria muito fazer um bom texto. Quando veio mil, quase não acreditei.”
Para Yuli também foi importante ter tempo para relaxamento. “Eu acreditava que não podia descansar e me divertir, mas dessa vez, apesar de abrir mão de muita coisa, tive meus momentos de lazer, diversão com a família, com os amigos. Não dá para abrir mão de tudo, senão não aguentamos a pressão. É quase um ano inteiro, é preciso se divertir, descansar e não estudar de madrugada, porque não compensa. Dormir e acordar cedo ajuda a criar uma rotina.”
Aprendizado para além da prova
Tanta dedicação e trabalho trazem mais do que conhecimento acadêmico. As meninas nota mil explicam que ganharam muito mais com essa trajetória. Segundo Yuli Mendes, que escolheu estudar sozinha, abdicando das aulas na Faculdade de Enfermagem para ter tempo de estudar e conseguir ingressar em Medicina, o autoconhecimento foi um ganho. “A prova do Enem não é acessível para todos. Muitos precisam de cursinhos que não são nada baratos. Não tive condições de pagar, estudei sozinha e considero que evolui muito. Tem que ter muita disciplina porque não é fácil. Tem gente que não pode deixar de trabalhar e tem o sonho de ingressar no ensino superior prejudicado.”
Ela ainda disse que como o tempo de preparação é longo, é importante não desanimar e não perder o ritmo. “Aprendi a estudar as matérias fazendo links entre elas, estudando uma e lembrando da outra. Aí comecei a aprender de verdade. É importante gostar de aprender e não estar apenas focado em conseguir a vaga.” Tudo isso levou a estudante a ser aprovada na chamada regular do Sisu, realizando o sonho de se tornar graduanda em Medicina na UFJF.
Bárbara Lima também divide o autoconhecimento que obteve e aconselha quem vai fazer a prova a conhecer os métodos de estudo mais adequados para a sua realidade. “Não adianta ver o outro fazendo e tentar fazer o mesmo, se não for a melhor forma para você. É preciso buscar se conhecer como estudante e procurar uma equipe de profissionais que te auxiliem. Eles vão te ajudar em suas dificuldade e cuidar também dos pontos fortes. Também é fundamental manter a calma para aproveitar a nossa formação, sabendo que a prova não representa todo o nosso conhecimento, nem tudo que somos.” Bárbara está aprovada em Medicina em Viçosa, onde já se matriculou, e se encontra como primeira excedente na UFJF para o mesmo curso. Caso passe, pela proximidade com a família, vai preferir ficar em Juiz de Fora.