A literatura como ‘remédio’ no CTI
Equipe multidisciplinar da Santa Casa insere leitura de contos em sua rotina para estimular pacientes, diminuir o tempo de internação e humanizar a relação com o espaço
O Centro de Tratamento Intensivo (CTI) de qualquer hospital ainda é costumeiramente associado a momentos de dificuldade, sofrimento e dor. Antes mesmo da saída da redação para conhecer o projeto CTI Literário da Santa Casa de Misericórdia, as pessoas perguntavam se éramos fortes e se estávamos preparados para estar diante de cenas impactantes e tristes. Mas o que encontramos ao chegar era muito distante das situações que as pessoas nos descreviam. A ideia de ter nas palavras um remédio não químico contrasta com o imaginário que reduz os cuidados hospitalares às aferições de taxas e aplicação de medicamentos, entre outros procedimentos.
“As pessoas ainda pensam que nos CTIs só há dor, desespero, tristeza, mas essa ideia é muito equivocada. É claro que lidamos com casos complicados, situações difíceis. No entanto, antes de tudo, temos pessoas aqui. Quando venho trabalhar, sou a Michele, uma pessoa, assim como qualquer paciente. Não vem somente a profissional. Me coloco nesse trabalho como o indivíduo Michele, com todas as minhas complexidades e sentimentos”, salienta a fisioterapeuta Michele Valle, que foi a responsável por dar início ao CTI literário. Além da atuação como profissional da área de saúde, ela e o médico Artur Laizo dividem a paixão pela literatura. Ambos são membros da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora (Leia-JF) e, foi durante uma conversa sobre o assunto, que uma paciente se interessou e pediu indicações de livros à fisioterapeuta.
“Ela estava internada no box um. Como aqui temos a complicação da possibilidade da infecção cruzada, disse a ela que tínhamos contos, inclusive, foi um conto meu que ofereci, e ela gostou muito. A paciente sugeriu essa ideia do projeto e começamos, pedindo outros contos a outros autores nacionais, que contribuíram muito”, detalhou Michele. Foi também no box de número um que a paciente Roseli de Oliveira, 51 anos, tornou-se uma das primeiras internas a serem convidadas a ouvir uma história. Um conto titulado: “A Magia do Natal”, também escrito por Michele.
“Ela leu para mim, e o texto tinha parte da minha história de vida. Eu me vi ali, naquela situação e chorei. Ela também se emocionou e chorou um pouco. Levo esse momento comigo para o resto da vida. É uma experiência muito bonita”, contou Roseli. Ela diz não gostar do Natal, por ter perdido sua mãe nessa época do ano. “Natal para mim é para quem é feliz. Para mim não serve”. Mas o conto, que traz uma lição sobre o olhar para o outro, a motivou a ver a celebração com outros olhos. “Hoje vejo o Natal como uma festa de aniversário. Quando eu tiver alta, vou comemorar meu aniversário junto. Não vou esperar o fim do ano chegar não.” Ela ainda está internada, fora do CTI, mas já planeja novos hábitos. “Foi mais tranquilo passar o tempo aqui com esse projeto. Vou continuar lendo e vou escrever um livro. Faço questão que a história se passe aqui no hospital. Vou me lembrar de todas as pessoas que me apoiaram, me acolheram e cuidaram de mim e também quero que o lançamento seja aqui dentro. Além disso, quero alertar as pessoas para o perigo de comer carne mal passada. Foi ela que me fez ter esse problema na cabeça que me trouxe até aqui.”
Soma de esforços pela humanização
O incentivo à leitura é uma das frentes de humanização do ambiente do CTI. A ação visa, entre outros objetivos, a diminuir a permanência do paciente nesse ambiente, reduzindo os riscos de contaminação cruzada e evitando a ocorrência de delírios e a perda da localização temporoespacial. “Buscamos melhorar a cognição do paciente, fazendo com que ele fique mais tempo acordado. Ele se interessa pelo assunto, se emociona, raciocina mais e, com isso, consegue reduzir esse tempo de internação no CTI. O cérebro também é um músculo e precisa ser exercitado. Estamos fazendo um apanhado de dados para mostrar essa relação, depois da instalação do projeto e aguardamos resultados positivos”, projeta o cirurgião Artur Laizo.
De acordo com Michele, não há um dia e horário específicos para a atividade. Os pacientes são perguntados sobre seu interesse em participar. Se o paciente está lúcido e a resposta é positiva, são oferecidos os contos. “Se ele consegue ler sozinho, os textos são selecionados e entregues. Depois, se eles quiserem, também podem levar para casa. Se eles tiverem dificuldade para ler, alguém da equipe se prontifica a ajudar. Desde que não atrapalhe as condutas médicas, os profissionais acompanham esse momento.” Com essa forma de trabalhar, que envolve a maioria dos trabalhadores do CTI, os benefícios começam a atingir não só os pacientes, mas também a todo o entorno.
“Muda a rotina de todos os colaboradores. Primeiro porque notamos a melhora significativa dos pacientes, faz um bem danado, tanto para nós, quanto para eles. Quando apresentamos o projeto, eles ficam encantados e pedem que a gente não pare. Temos televisões e rádios em todos os boxes, mas eles gostam tanto dos contos, que acabam nem ligando muito para os aparelhos”, conta a enfermeira Lívia Machado. O ato de ter que ler para as pessoas que estão em tratamento também faz com que esses trabalhadores criem uma relação com a literatura. Primeiro, porque eles fazem uma pré-avaliação da mensagem que é passada no texto, para saber se ela é adequada à situação individual do paciente, depois, porque eles acabam se envolvendo com aquelas palavras. “Sempre perguntamos se as pessoas querem ler sozinhas, mas, na maioria das vezes, elas pedem para que a gente leia. Conseguimos passar esse sentimento, e é muito gratificante a forma como interagem e respondem. Já aconteceu de termos que sair do box, porque o paciente estava emocionado com uma história, e nós também ficamos. É uma experiência maravilhosa!”, relata a enfermeira. Além dela, outros colegas relataram que passaram a ler mais, desde que começaram a ser o vínculo entre as pessoas internadas e as histórias. A contaminação com o bom hábito da leitura segue. Além dos profissionais e dos pacientes, os textos podem chegar aos familiares dessas pessoas, porque seguem com elas e não só podem, como devem ser compartilhados.
Médicos escritores
Quando recebeu a primeira solicitação para levar um livro ao CTI, Michele não pôde deixar o artigo entrar na unidade. Naquele ambiente, o objeto inocente, feito de papel, poderia esconder grandes ameaças à saúde da paciente. A saída, para que ela conseguisse fazer com que as palavras chegassem àquela mulher, foi imprimir o texto para ela. O gênero conto não foi escolhido aleatoriamente. “São textos curtos, de fácil assimilação, que podem estar contidos em uma ou duas páginas impressas. Essas características facilitam o descarte e evitam a contaminação cruzada. Sendo que, ao final do tratamento intensivo, pode ser levado para casa”, explica Michele. Artur Laizo acrescenta que “esse tipo de texto ainda contribui para fixar a atenção do leitor e apresenta um clímax, com mensagens com algum fundo motivacional ou de reflexão”.
Os dois consideram uma oportunidade única poder presenciar o contato dos leitores com os textos que escrevem. Ver de perto as reações e as impressões pessoalmente é algo que ambos consideram gratificante. “Ver que algo mudou na vida dele, sentir que as pessoas se emocionam, é outra coisa”, afirma Michele. “Trilhamos um caminho árduo, porque a arte não é valorizada no nosso país. Sou escritor desde criança, tenho nove livros publicados. Estamos sempre escrevendo, buscando divulgar a literatura, mas ainda é muito difícil fortalecer esse hábito nas pessoas. Vimos que combinar medicina intensiva e literatura é muito bom, em vários pontos.” Além dos textos criados pelos dois profissionais, o projeto conta com a colaboração de outros autores e está aberto para receber contos. Os interessados em contribuir podem entrar em contato pelo email: [email protected].
Para outros profissionais que tenham vontade de desenvolver algo semelhante em seus ambientes de trabalho, ela aconselha que tenham, antes, alguma relação com a literatura. “‘Além de boa vontade, a humanização tem que estar muito presente dentro daquela pessoa. Ela precisa querer passar isso para o paciente, e claro, precisa ler. É fundamental ter esse vínculo, se não gostar de escrever, tem que ter interesse pela leitura.”
Expandindo horizontes
Muitas vezes, quem se encontra internado em um CTI vai perdendo a noção da passagem de tempo. Não há uma diferença muito clara de percepção entre dia e noite. O contato por meio da leitura ajuda quem está internado a retomar essa dimensão. Jair Domingos da Silva, 55 anos, recupera-se de um infarto. Ele já tinha passado pelo problema há cinco anos. Retornou ao CTI cirúrgico após passar por um procedimento fazendo três pontes com veias safena. Já no leito do CTI há dois dias, ele foi apresentado ao projeto e ficou encantado. Jair apontou o tubo de respiração e disse: “A gente que se encontra nessas condições, espera algo a mais. Seja um gesto de carinho ou dedicação. É muito bonito receber essa atenção desses profissionais, que expressam sua preocupação com a gente de uma forma tão bacana. Gostei muito da ação. Isso deveria acontecer em outros hospitais também, porque, às vezes, uma história lida por eles pode salvar uma vida.”
O paciente conta que tem o hábito de ler, o qual pretende continuar depois da alta. “A leitura deixa a gente mais firme, mais seguro. Arrisco dizer que ajuda a diminuir a dor e as preocupações, fora que ainda faz o tempo passar mais rápido. Sempre tem algo a ser passado por meio dessas histórias, elas mexem com a gente. Lembrei dos velhos tempos, quando contava histórias para os meus filhos dormirem. Era um jeito de ajudá-los a acalmar o coração e ficarem tranquilos.” Tranquilidade que ele diz querer levar a outras pessoas. “Se eu puder levar esse projeto para outras pessoas, quando eu estiver bem, eu vou fazer.”