Mulheres driblam sub-representação nas ciências e buscam inclusão
Tribuna conversa com quatro mulheres que se destacam em suas áreas e estão à frente de inovações tecnológicas
De acordo com dados divulgados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em 2023, apenas 12,3% dos cargos de tecnologia são ocupados por mulheres. Entre os anos de 2015 e 2022, no entanto, a presença feminina teve um aumento de 60%, mostrando que o interesse pela área tem crescido. Dentro das graduações e pós-graduações, essa desigualdade, no entanto, também permanece. De acordo com dados do Ministério da Ciência, apesar de as mulheres já serem maioria entre os titulados na pós-graduação no Brasil, há disparidade de gênero que se acentua em algumas áreas. Nas ciências exatas e da terra, 35% dos bolsistas são mulheres, enquanto em engenharias e computação, elas são 33,6% dos bolsistas.
Atualmente, no entanto, a demanda por profissionais nessas áreas e a necessidade de aperfeiçoamento das tecnologias têm levado mais pessoas a repensarem esse cenário. Em Juiz de Fora e em todo o Brasil, as mulheres passaram a driblar a sub-representação nesses campos, estão à frente de avanços tecnológicos e buscam inclusão para mais mulheres.
A Tribuna conversou com quatro mulheres que se destacam em suas áreas e que, percebendo os desafios que tiveram que enfrentar para ocuparem esses lugares, também buscam meios de abrir portas para outras.
‘Por que essas mulheres não estão chegando?’
Bárbara Quintela se formou em sistemas de informação, já tendo ocupado diferentes cargos ao longo de sua carreira, inclusive trabalhando como programadora e analista de sistemas. “Já cheguei a trabalhar em um departamento que tinha em torno de 12 pessoas e eu era a única mulher trabalhando com desenvolvimento”, conta. Durante sua trajetória, resolveu que queria ser professora, e fez mestrado e doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora. Desde 2018, atua como professora do Departamento de Computação, onde resolveu agir para mudar parte dessa desigualdade que sentiu, e que outras alunas ainda sentem: a falta de referências e, ainda, dificuldades relativas ao pertencimento à área, que podem ser explicadas pelos estereótipos criados em torno das pessoas que trabalham com isso, seja pela falta de incentivo ou, até mesmo, por preconceito.
“Comecei a ver nos últimos anos uma inquietação das alunas de exatas, em geral, com alguns comportamentos machistas de professores e alunos, que as tratavam como se mulheres não devessem estar ali. Fiquei muito incomodada com isso. Eu já conhecia o programa nacional chamado ‘Meninas Digitais’, que é da Sociedade Brasileira de Computação, então já há bastante tempo eu tinha vontade de ser mais ativa, mas ainda não sabia como”, conta. Em 2022, então, foi criado o ‘Meninas Digitais UFJF’, que leva computação desplugada para escolas municipais, buscando trazer atividades e presença feminina para estimular o interesse pela área.
Percebendo os impactos desse movimento, Bárbara também se engajou no ProgramADA, que é um projeto feito para manter as meninas nesses cursos durante a universidade, a partir da criação de um aplicativo – feito também em parceria com estudantes – que as ajude nesse percurso. “O objetivo é acolher, porque quando você chega em um curso em que você é minoria, tem aquele questionamento: ‘será que eu deveria estar aqui?’. E esse jogo é para que elas se sintam pertencentes”, diz. Além disso, Bárbara também trouxe para Juiz de Fora o projeto ‘Meninas Programadoras’, da professora Maria da Graça, da Universidade de São Paulo (USP), que traz aulas remotas de Python para meninas que estão terminando o ensino médio.
“Temos três projetos em andamento, dois de extensão e um de treinamento profissional, para atender as meninas desde o ensino básico, passando pelo ensino médio e chegando até a universidade, para que elas continuem nessa carreira”, conta. A vontade de continuar fazendo isso prosseguiu, principalmente percebendo alguns recortes, como a falta de mulheres negras na universidade nesses campos. “As empresas estão investindo em treinamentos para mulheres e tem várias fazendo também recrutamentos específicos de mulheres. O entendimento, hoje, é que para ter produtos melhores, é preciso equipes diversas”, diz.
A importância de políticas públicas de acesso e permanência
Quando Zélia Ludwig se interessou pelas ciências e, mais particularmente, pela física, ainda era difícil encontrar referências na área que se parecessem com ela. Foi com professores e aulas que a estimulavam a entender mais sobre esse universo que começou a aprender, e o estímulo dentro de casa também foi fundamental. Com seu pai, torneiro mecânico, Zélia começou a aprender a partir de perguntas que fazia, e para as quais ele gostava de trazer respostas bem explicadas. “Ele não deixava a nossa curiosidade morrer”, conta. Além disso, também tinha uma tia que a aconselhava: “Ela me incentivava muito a ler, era professora de português. Ler traz conhecimento, e conhecimento é poder, com ele você vai longe”. Sendo assim, ela começou a estudar na área, sendo graduada em física pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em licenciatura plena em física pela Universidade de São Paulo (USP); mestre em tecnologia nuclear, doutora em ciências e pós-doutora na área de materiais vítreos pela USP. Desde então, já foi pesquisadora convidada inclusive internacionalmente, além de professora e pesquisadora na UFJF.
Sendo mulher, negra e cientista, o que mais a desafiou nessa trajetória foi encontrar formas de resistir ao machismo, ao racismo e ao preconceito. “Esse não é um problema meu, é um problema da sociedade, é estrutural. O desafio maior é como enfrentar isso no dia a dia sem adoecer, como fazer para sobreviver”, questiona. Por isso, ela destaca a importância dos editais de incentivo que funcionem de forma contínua e formas de fazer com que as meninas, depois de entrarem nesses cursos, permaneçam. “A gente precisa disso para que se sinta confortável nesse meio e entenda que esse também é o nosso lugar. (…) Isso é muito bacana, para começar a envolver mulheres em todas as instâncias, sejam professoras, alunas, estudantes, de todas as etnias e de todos os lugares”. Da sua parte, uma das contribuições foi criar o ‘Para todas as meninas na ciência’, que atua como uma jornada de divulgação científica no Centro de Ciências, trazendo atividades, oficinas e conversas, e, assim, incentiva a presença das meninas.
Quando Zélia se tornou mãe, ela também percebeu os novos desafios que foram impostos para que continuasse exercendo sua profissão. A partir dessa experiência, por exemplo, foi preciso entender que mesmo querendo participar de alguns projetos ou fazer especializações no exterior, não poderia – e que durante essa fase inicial da maternidade, haveria um vazio no currículo. Entender essa realidade também fez com que percebesse ainda melhor a necessidade de uma rede de apoio que refletisse sobre essas dificuldades para mulheres em diferentes situações e condições, inclusive diferentes da sua. “É preciso engajar estudantes, professores e diretores a pensarem nessas questões e em como fazer para aumentar o número de meninas na ciência, incentivá-las a ocupar espaços de poder de decisão, além de políticas públicas para garantir o acesso e a permanência. E com editais de fomento de forma continuada, porque sem bolsa não tem como tocar projetos”, ressalta.
Aproveitar as oportunidades para mudar esse cenário
Durante a pandemia de Covid-19, Millena Xavier se engajou em olimpíadas científicas e começou a “fazer todas as possíveis”. Entre elas, fez uma para a área de tecnologia e informática, progressivamente se interessando por essas áreas. “Percebi que com a tecnologia poderia ajudar a resolver alguns dos principais problemas do mundo, no geral, então eu decidi investir na área, colocar toda a minha energia e meu foco nisso”, conta. Atualmente com 17 anos, ela foi para a lista da Forbes Under 30 na edição de 2023, entre empreendedores, criadores e game-changers que se destacam por revolucionar negócios e transformar o mundo. Ela recebeu um reconhecimento na área de ciência e educação, justamente depois de ter feito uma plataforma de inteligência artificial voltada para alunos que querem se engajar nessas olimpíadas, assim como foi seu caso.
Por gostar da área desde nova, ela também sempre notou as desigualdades de acesso e de presença entre homens e mulheres. Mas por ter gostado muito das possibilidades de projetos que poderia desenvolver, começou a aproveitar as iniciativas que existiam para mudar esse cenário, inclusive com formações que eram direcionadas para mulheres. “Eu acho que falta mostrar para as meninas essas áreas desde a infância, criar uma cultura de estímulo ao aprendizado dessas áreas e fomentar o desenvolvimento”, reflete. Inspirada por mulheres como Marie Curie e Ada Lovelace, que escolheram áreas dentro da STEM (sigla que engloba áreas da Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática), ela pretende fazer o curso de Engenharia Computacional.
‘Quando você sabe que faz a diferença, isso é possível’
“No início, foi muito difícil. Quando fui fazer o processo seletivo, só tinha pessoas do campo de exatas, e durante o processo seletivo, o que mais me perguntavam era o que eu estava fazendo ali. Depois, os meus colegas também. Então era um esforço dobrado: além de ter que aprender o que eu estava me dispondo, eu tinha que provar para as pessoas que aquele ali também era o meu lugar”, conta Priscila Capriles, atualmente professora do Departamento de Ciência da Computação.
Vinda de outra graduação, na área da saúde, e ainda com um filho pequeno quando começou a dar aulas, ela conta que precisou enfrentar muitos desafios para chegar até onde está hoje. Com grande interesse por aliar saúde e tecnologia, além de trazer foco para o empreendedorismo, foi aos poucos percebendo que ocupar esse espaço era muito necessário para todos. “Comecei na área de saúde no básico, nos laboratórios e nos hospitais. Via que existia muita possibilidade das tecnologias ajudarem a acelerar bastante o processo de novas descobertas, mas que a gente não tinha pessoas que fossem da área e entendessem de tecnologia. (…) Já que estava faltando, resolvi que iria começar a fazer”, conta.
Durante sua carreira, no entanto, Priscila foi percebendo que, como os trabalhos na área de tecnologia demandam, às vezes, horários que não são os convencionais dos comerciais, essas vagas afastavam as mulheres. “Já tive oportunidade de estar em liderança dentro de empresas, e quando a gente fazia um recrutamento, a quantidade de currículos que recebíamos de mulheres era muito pouco. Isso foi chamando a minha atenção. Quando conseguíamos recrutar, elas se sentiam deslocadas dentro de um ambiente de tecnologia em que havia cinco ou seis homens e elas eram as únicas mulheres. Por isso, muitas vezes elas também acabavam ficando pouco tempo nas vagas”, conta.
Em sua pesquisa como professora, Priscila se dedica ao desenvolvimento de novos medicamentos, fazendo trabalho computacional. Depois, os produtos vão para as bancadas e os laboratórios na Fiocruz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da UFJF, para serem comprovados e seguirem adiante, tendo inclusive parceria com o Monte Sinai Nova York para estudos de anticorpos para vacinas.
Por essa experiência, a professora enxerga que o conselho mais importante para as mulheres que, assim como ela, escolhem essa área, não é exatamente dominar uma disciplina na área de tecnologia, mas conseguir um desenvolvimento da área socioemocional, para trabalhar a certeza de estar no lugar certo, ter tomado a decisão certa e fazer a diferença. “Depois, é encontrar na universidade as suas referências, que não precisam ser exatamente só mulheres, podem ser pesquisadores que estejam lá para apoiar a causa e ajudar nesse desenvolvimento”, indica. Para ela, descobrir aquilo que a realiza como pessoa e profissional é essencial. “Você tem que fazer aquilo pelo que é apaixonado. Quando tiver que trabalhar de madrugada ou dormir só duas horas por noite, ainda é preciso levantar com gás e feliz. Quando você sabe que faz a diferença, isso é possível”, diz.