Uso excessivo de telas por crianças pode trazer prejuízos ao desenvolvimento cognitivo
Tribuna conversou com pais que mostraram bons exemplos de como a restrição de telas pode impactar positivamente no cotidiano das famílias
Brincar na rua, subir em árvore e empinar pipa são atividades cada vez mais distantes da realidade de crianças que moram nos centros urbanos. Ao invés do faz de conta, o mundo digital tem tomado lugar no imaginário dos pequenos através de telas, sejam elas a da TV, celular ou computadores. O uso excessivo, no entanto, está relacionado a uma piora na saúde mental de seus usuários, independente da idade, mas pode ser ainda mais danoso quando se trata de crianças.
Um estudo feito no ano passado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)) mostrou que 72% das crianças avaliadas constataram aumento de depressão associado ao abuso da exposição a telas. Outra motivação para esses resultados é a utilização dos dispositivos como distração para as crianças enquanto os pais fazem suas tarefas, o que contribui para a elevação das horas de uso. Nesse sentido, o distanciamento entre pais e filhos pode provocar um aumento da disposição para a depressão nas crianças.
A pesquisadora responsável pelo estudo, Renata Maria Silva Santos, aponta que a pandemia da Covid-19 pode ter relação com o aumento do tempo em frente às telas. “Percebeu-se que os pacientes jovens com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, além de depressão, tinham as telas a todo momento, e, no período de pandemia, elas foram as principais aliadas contra a solidão. Porém, as consequências desse uso excessivo podem ser vistas agora.”
Na contramão
A servidora pública Renata Meirelles é mãe dos gêmeos Théo e Arthur, de 10 anos. Na contramão do que vem acontecendo com crianças na idade deles, os meninos nunca tiveram acesso irrestrito a telas. Não possuem celular, tablet, e só utilizam o computador para pesquisas da escola. A TV é liberada para assistir alguns filmes e desenhos, mas tudo com hora marcada.
Renata explica que a decisão, tomada de forma conjunta com o marido, se deu através da observação da experiência de outros pais e pesquisas sobre o prejuízo do uso de telas no desenvolvimento das crianças. “Foi uma decisão que tomamos desde o início. Desde bebezinhos a gente não colocava eles próximos a televisão. Buscamos sempre trabalhar a parte lúdica, tanto na educação, quanto nas brincadeiras.”
Gosto pela leitura
O principal resultado, conforme Renata, foi a afinidade que os meninos criaram naturalmente com a leitura. Sem telas para se distrair, quando não estão brincando entre eles, os gêmeos perdem horas nos livros. “Às vezes eu percebo que eles estão muito quietos, vou ver o que estão aprontando e, quando vejo, está cada um em um canto com um livro na mão ou um gibi.”
O hábito faz com que o português dos meninos ficasse acima da média, algo elogiado inclusive pelas professoras da escola. “Além de tirar notas excelentes nas aulas de português, o próprio vocabulário deles e a concordância verbal são perfeitos.”
Por mais que as restrições surtam efeitos positivos, Renata explica que é preciso disposição e força de vontade. Afinal, limitar o uso de telas implica um maior tempo livre por parte das crianças e, consequentemente, mais atenção dos pais. “Eu vejo que, na sociedade corrida em que vivemos, onde pai e mãe trabalham o dia todo, dar um celular, um tablet na mão das crianças é uma forma de descanso também. Tanto eu quanto meu marido trabalhamos, mas oferecer esse maior tempo de atenção aos meninos foi algo que entramos em acordo e se tornou uma coisa muito natural e prazerosa.”
Habilidades sociais
Outra boa experiência foi compartilhada pela prestadora de serviço de bordados Ivonete de Oliveira, com a filha Helena, de 9 anos. O uso de telas acontece apenas no fim de semana, quando a menina pode pegar o celular, mas apenas se as tarefas estiverem em dia e tudo com tempo cronometrado.
Conforme conta a mãe, ao observar os colegas de sala da mesma idade, Helena se destaca principalmente no comportamento social. “A maioria das crianças não conversa, ou tem dificuldade de interagir, não brinca, algumas nem sabiam andar de bicicleta. Fora a atitude nervosa delas diante dos pais caso eles tentem alguma forma de restrição. A principal diferença é que minha filha conversa com as pessoas, olha nos olhos, gosta de brincar. Sem contar o desenvolvimento na escola, que é bem melhor.”
Ivonete conta que alguns colegas de sala questionam a menina o motivo de ela não ter um celular e, com isso, ela chegou a pedir algumas vezes. “Falamos que talvez com 12 anos e claro, com regras. Mas não é nada certo ainda. Vamos avaliar a necessidade.”
Qual o limite para o uso de telas?
Em um mundo cada vez mais conectado, fugir das telas é quase impossível, mas o professor de Psicologia da Estácio, Carlos Eduardo Pereira, elenca motivos pelos quais vale o esforço na hora de tentar restringir o uso às crianças. De acordo com ele, o ideal é que até a segunda infância, por volta dos 6 anos, o contato com as telas seja o mínimo possível. Nos anos iniciais, a exposição pode prejudicar o desenvolvimento sensorial e motor do indivíduo.
A tecnologia, como um todo, seja através de TV ou celular, tem tendência a criar um padrão de inatividade nas crianças. “O ideal é que essas tecnologias possam ser apresentadas apenas na segunda infância, fase entre os cinco e seis anos. Mas também com o menor tempo possível.”
Por mais que o uso excessivo seja prejudicial em qualquer idade, na infância ele pode ser mais danoso. “É um cérebro que ainda está em formação, que ainda apresenta uma plasticidade muito grande e qualquer abuso da tecnologia nessa faixa etária tem uma tendência a causar grandes prejuízos, por gerar, de fato, modificações estruturais muito grandes na forma como a criança pensa, como ela aprende e como interage com o mundo.”
Já o adulto, por outro lado, possui as chamadas “funções cognitivas” mais bem desenvolvidas, como atenção, memória, pensamento crítico e linguagem, por exemplo. “E mesmo assim ele sofre influência da tecnologia. Na criança, onde a sensibilidade e a vulnerabilidade para essas influências é muito maior, o prejuízo tende a ser muito grande e cabe aos cuidadores protegê-las desses impactos.”
Aliadas nos estudos
Em fevereiro deste ano, a Prefeitura do Rio de Janeiro optou por proibir o uso dos celulares em sala de aula. Conforme o decreto, assinado pelo prefeito Eduardo Paes, a proibição na rede pública municipal acontece dentro e fora da sala de aula. Também vale em caso de realização de trabalhos individuais ou em grupo, mesmo fora da sala de aula, e durante os intervalos, incluindo o recreio. Os celulares e demais dispositivos eletrônicos deverão ser guardados na mochila ou bolsa do próprio aluno, desligado ou ligado em modo silencioso.
A medida, segundo a Prefeitura, levou em conta estudos recentes como o da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável pelo Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA). Estes estudos indicam que o uso inadequado ou excessivo da tecnologia tem impacto negativo para os alunos no ambiente escolar.
Para o psicólogo Carlos Eduardo Pereira, a medida de restringir totalmente talvez não seja a melhor solução. “A tecnologia veio para ficar, ela faz parte da nossa vida e compõe o cotidiano. A gente também não está aqui demonizando o uso da tecnologia, não é sobre isso. O problema não está no uso, está no abuso. No mal uso da tecnologia, na exclusividade que as telas têm ocupado em nossa vida. As telas podem ser aliadas do estudo, mas tudo vai depender da forma e do conteúdo que são consumidos.”