Registro de armas de fogo cresce mais de 100% entre 2019 e 2020
Dados da Polícia Federal mostram explosão no número de armamentos registrados em todo o estado
Entre 2019 e 2020, o número de armas de fogo registradas junto à Polícia Federal (PF) mais do que dobrou em Juiz de Fora. Os dados foram obtidos pela Tribuna via Lei de Acesso à Informação (LAI) e mostram salto de 225 para 455 registros em apenas um ano (102,2%) com tendência aumento em 2021. A nível estadual, a explosão no número de armamentos regularizados também é visível e, segundo especialistas em segurança pública ouvidos pela Tribuna, refletem um cenário nacional de crescimento contínuo na demanda ao longo dos últimos anos.
Quando aumentado o espectro de observação, o crescimento exponencial é ainda mais visível: em 2016, Juiz de Fora teve apenas 70 armas de fogo registradas junto à PF. Comparado com as 455 armas registradas em 2020, o aumento flagrado é acima de 550% ou 6,5 vezes a mais. Neste ano, a tendência é de novo crescimento, de acordo com os dados do primeiro trimestre, que já apontam para 167 novas armas legais em circulação.
Os dados posicionam o município como o segundo do interior mineiro com maior quantidade de novas armas no somatório dos números dos dois últimos anos e do primeiro trimestre de 2021: 847 registros, atrás apenas de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, com 1.437. A capital Belo Horizonte puxa a fila, com 7.102 registros nos dois anos.
Os dados também chamam a atenção a nível estadual. Entre 2016 e 2020, o número de armas de fogo registradas junto à Polícia Federal em Minas Gerais foram, respectivamente: 4.394, 6.523, 7.543, 10.112 e 22.082. Ou seja, crescimento de 118% quando comparados os dois últimos anos, ou aumento de cinco vezes quando comparados os números de 2020 com os de 2016.
Tendência nacional
A maior aquisição de armamentos para a população reflete um cenário nacional, de acordo com especialistas ouvidos pela Tribuna. Segundo a assessora especial do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos, o ritmo de registros começou a se acentuar na última década. Nos três últimos anos, segundo os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), houve aumento de 242% nos números: saiu de 35.758 registros, em 2018; para 122.378, em 2020, em dados que incluem apenas compras de armas por pessoas físicas.
O período de maior demanda coincide com a ascensão ao poder do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que teve como mote de campanha, em 2018, a política armamentista. Apesar de afirmar que as informações disponíveis são insuficientes para compreender com exatidão o perfil do comprador de armas, Michele relaciona a alta nos dados com o comportamento presidencial. “É óbvio que a gente vive um momento em que a questão do armamento da população é uma das principais bandeiras do atual Governo federal, que avança na publicação de uma série de medidas que flexibiliza os critérios para aquisição, aumenta a quantidade de armas e munições que cada cidadão pode comprar e apresenta a possibilidade de acesso (às armas) como uma resposta para os problemas de segurança pública”, aponta.
O marco regulatório da legislação brasileira sobre o tema é o Estatuto do Desarmamento, com uma série de previsões que restringem o acesso do brasileiro ao armamento. A lei foi aprovada em 2003 refletindo uma grande preocupação do Estado com a crescente violência urbana àquela altura, de acordo com a assessora do Instituto Igarapé, mas necessitava de uma série de avanços paralelos à legislação. Entre as necessidades, estava a maior integração no sistema de informação da Polícia Federal com o Exército, o que não ocorreu.
“A lei é um marco importante, mas o que nós precisávamos era que essa fosse uma política priorizada pelos diferentes governos, no sentido de avançar em uma série de recomendações e desafios que são naturais em toda a área de política pública, é um processo”, explica Michele. No entanto, o caminho tomado foi o inverso, com as políticas desarmamentistas sendo constantemente enfraquecidas, de acordo com a pesquisadora. “Tem uma série de coisas que a gente precisa fazer. Mas, ao invés de avançar nessas medidas, o que nós temos é uma série de retrocessos”, sentencia.
Durante os últimos anos, cerca de 30 atos normativos foram editados pela Presidência da República para desburocratizar e ampliar o acesso a armas e munições por civis e por quem tem registro como colecionador, atirador e caçador (CAC). No ato mais recente, ocorrido em abril, quatro decretos do presidente Jair Bolsonaro foram “podados” pela ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber.
A ministra suprimiu trechos que limitavam o controle feito pelo Comando do Exército sobre munições e acessórios para armas; autorizavam a prática de tiro recreativo em entidades e clubes de tiros a pessoas sem registros prévios; possibilitavam de aquisição de até seis armas de fogo; liberavam a prática de tiros para adolescentes a partir dos 14 anos de idade; entre outros pontos sensíveis.
Reflexos na segurança pública
Pelos exemplos internacionais, o maior acesso da população às armas não se reflete em maior segurança, segundo o pesquisador do Núcleo de Estudos sobre política de drogas, violências e direitos humanos (NEVIDH), Paulo Fraga. “A gente não pode pensar em uma política pública de segurança baseada no armamento individual. (Ela) deve ser para todos. Você não faz uma política pública voltada para uma defesa individual”, analisa.
De acordo com dados levantados pelo NEVIDH, em Juiz de Fora, 80% das mortes de homens entre 15 e 46 anos é decorrente de armas de fogo. Além disso, a maior circulação de armas legais possibilita o extravio de armamentos regularizados para serem utilizados por criminosos. “Todos esses elementos devem ser levados em conta para cair esse mito de que, quanto mais pessoas armadas, menos violência tem. Isso não é verdade, os dados mostram isso a nível internacional”.
Queda recente nas mortes por armas
Apesar da alta na quantidade de armas de fogo regulares circulando nos últimos anos, o número de mortes violentas tem apresentado recuos consecutivos desde 2017 em Juiz de Fora. Naquele ano, 113 mortes do tipo foram registradas. Em 2018, o número caiu para 90 homicídios, com nova queda em 2019, quando 65 vítimas de crimes violentos fatais foram registradas, e estabilização em 2020, ano em que 65 pessoas morreram dessa forma na cidade. Em todos os anos, os assassinatos a tiros foram os modos mais recorrentes, com índices variando entre 65% e 80% dos homicídios.
A queda local nos homicídios também é refletida nos números nacionais. Enquanto 65 mil pessoas perderam as vidas em homicídios no Brasil em 2017, 45 mil morreram em 2019. O número voltou a crescer em 2020 também a nível nacional, mas ainda em patamar inferior ao de quatro anos atrás: 43.892 mortes. Os dados são do Monitor da Violência, ferramenta do portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A baixa nas mortes, na visão da assessora especial do Instituto Igarapé, Michele dos Ramos, não deve ser interpretada como um argumento favorável à política armamentista. Há outras questões a serem analisadas pelos órgãos públicos para compreender a dinâmica da segurança pública brasileira, segundo a assessora. “Para a gente pautar (o assunto) baseado em evidências mais concretas, a gente precisa olhar para esse quebra-cabeças de diferentes formas de criminalidades e violências que são impactadas por essa agenda de flexibilização do controle de armas e munições. E, obviamente, homicídios por armas de fogo são um indicador fundamental para essa análise, mas a gente não pode esquecer de olhar para outros indicadores”, argumenta.
A necessidade de visão interdisciplinar para se discutir a segurança pública é também corroborada pelo pesquisador Paulo Fraga. “Nós temos uma segurança pública, no Brasil, que precisa ser muito melhorada. Não existe uma única solução. São vários caminhos a serem trabalhados”, conclui.