Proibição é a melhor alternativa? Especialistas debatem impactos do uso de celular na escola
Profissionais da área da educação ouvidos pela Tribuna defendem estratégias para regulamentação e educação midiática no currículo escolar
O debate sobre o uso de celulares no ambiente escolar no Brasil e suas consequências tem se intensificado desde o fim da pandemia. No mês passado, o Ministério da Educação (MEC) anunciou que tem desenvolvido um projeto de lei que deve instituir a proibição dos aparelhos nas instituições de ensino públicas e privadas do país. A medida está prevista para ser apresentada em outubro junto a outras propostas, com o objetivo de conter os prejuízos do uso excessivo de telas na infância e na adolescência.
Segundo a pesquisa TIC Educação 2023 do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o uso de celulares em sala de aula já é proibido em 28% das escolas brasileiras. No entanto, a ação divide opiniões de estudantes, pais e profissionais que atuam na área da educação.
A Tribuna conversou com duas especialistas sobre os problemas envolvendo o uso da tecnologia nas escolas, assim como as vantagens do instrumento quando usado para fins educacionais e as possíveis alternativas para lidar de forma consciente com a questão. Para a psicóloga Roseane Mendonça, a solução não está necessariamente na proibição. Segundo ela, banir pode gerar ansiedade nos adolescentes, que lidam com a necessidade de se sentirem conectados constantemente às suas redes sociais, além de não ensinar aos jovens como usar a tecnologia de forma equilibrada e responsável. A psicóloga ainda alerta para o fato de que os adolescentes são bons em elaborar estratégias para “burlar” as proibições, o chamado contra-controle na psicologia comportamental.
“O ideal é estabelecer estratégias para regulação e o uso consciente da tecnologia. Mas, sabemos que estas estratégias são mais trabalhosas do que as proibições e restrições e demandam intencionalidade e monitoramento. Pais e escolas precisam trabalhar em conjunto para estabelecer limites claros e promover o uso saudável de celulares e outras tecnologias”, diz a especialista.
Roseane atuou por mais de 10 anos como psicóloga escolar e enxerga alguns benefícios significativos proporcionados pelo uso saudável e adequado da tecnologia, como o acesso rápido a informações e o uso de recursos para organização – como aplicativos de agendas. A psicóloga acredita que o acesso gradual e o uso controlado dos dispositivos pode ajudar também no processo de amadurecimento das crianças e adolescentes. “Contudo, para atingir este potencial, é importante que eles sejam estimulados e supervisionados nessa aquisição de competências. Os adultos precisam ajudá-los e monitorá-los para que estes aprendam a fazer uso dos recursos, guiando no excesso de informações e a ter senso crítico para um uso saudável e adequado das tecnologias. Outra questão importante é que os adultos – famílias e educadores – sejam modelos para o uso das tecnologias, a chamada tecnorreferência.”
Pesquisa aponta prejuízos causados pelo uso excessivo de celular
Por outro lado, Roseane também destaca que o uso excessivo e sem monitoria de celulares pode prejudicar o foco e a capacidade de concentração dos estudantes. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) 2022, oito em cada 10 alunos brasileiros de 15 anos disseram que se distraem com o uso de celulares nas aulas. A pandemia de Covid-19 acelerou o aparecimento de impactos negativos do uso de telas, já que houve a necessidade da adoção do ensino remoto e esse se tornou o principal meio de interação social. De acordo com a psicóloga, o tempo excessivo de tela pode impactar negativamente o desenvolvimento cognitivo por reduzir o tempo dedicado à leitura, estudo e reflexão crítica, bem como o tempo de sono.
“Além disso, há preocupações quanto ao impacto nas habilidades sociais, já que muitos adolescentes tendem a substituir interações presenciais por contatos virtuais. Do ponto de vista do neurodesenvolvimento, os adolescentes ainda estão em processo de maturação cerebral, especialmente nas áreas ligadas ao controle inibitório e ao planejamento, como o córtex pré-frontal. A exposição prolongada às telas pode comprometer esse desenvolvimento, criando dificuldades no autocontrole e na gestão de tempo e tarefas, além de aumentar o risco de problemas de atenção”, alerta a profissional.
‘Danos são muito maiores do que eventuais ganhos’
Há 14 anos, a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Cristiane Brasileiro trabalha como coordenadora do programa de formação continuada de professores de escolas públicas e particulares do nível básico da Fundação Cecierj e acompanha diretamente as discussões sobre o tema. Além da experiência profissional, Cristiane também é mãe de um adolescente de 13 anos, e acredita que a tentativa de manter a escola como um ambiente favorável a um tipo de atenção e concentração – raro nos dias atuais, devido ao excesso de estímulos rápidos e viciantes causados pelas tecnologias – é muito válida, e a proibição dos celulares pode colaborar para alcançar esse estágio.
“É possível pensar em atividades pedagógicas interessantes e válidas em sala de aula que incluíssem eventualmente o uso do celular. No entanto, acredito que os danos de estimular ou naturalizar o uso regular do aparelho nas escolas são muito maiores do que os eventuais ganhos que isso possa gerar. E, a partir da permissão para que os celulares fiquem normalmente em sala de aula, a dificuldade de controlar isso pelos professores é absoluta e o impacto que isso tem sobre o nível de atenção das crianças em sala de aula é muito desastroso”, aponta a professora.
Especialistas defendem educação midiática como parte do currículo escolar
Para tornar a relação entre jovens e celulares mais saudável, a principal alternativa é a educação. A psicóloga defende que a educação midiática deve ser parte do currículo escolar, ensinando os alunos a gerenciar seu tempo de tela, a reconhecer os riscos do uso excessivo e a aproveitar a tecnologia de forma saudável e positiva. Para isso, as escolas e as famílias precisam estar em diálogo e implementar ações parecidas. Uma sugestão da especialista é trabalhar a conscientização dos malefícios que o uso irrestrito de dispositivos pode causar.
“O ideal seria uma abordagem mista, onde o uso do celular é restrito em sala de aula para evitar distrações, mas permitido em outros momentos, com supervisão e orientação para o uso consciente. Além disso, as famílias devem atuar nesta mesma prática em casa, estabelecendo horários e limites para o uso de dispositivos, criando um ambiente saudável e equilibrado tanto no contexto educacional quanto familiar. Uma boa estratégia é o uso de aplicativos e outros dispositivos de controle parental”, ela orienta.
No Colégio dos Jesuítas, os estudantes podem portar seus aparelhos celulares, mas o uso, em sala de aula, somente com intencionalidade e como recurso pedagógico de pesquisa. “Seria um retrocesso negar o uso do celular dentro dos espaços do colégio. Somos favoráveis ao uso pedagógico, mas não como um distrator. O colégio mantém um aplicativo para uso de estudantes e da famílias, informando atividades extraclasse”, conta o diretor acadêmico Welerson Mazzo Spada.
Interação social e nível de atenção melhora em escolas que adotaram medida em Portugal
A professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Gabriela Borges afirma que existe um grande déficit em relação ao ensino das mídias no Brasil. Há cerca de 15 anos, Gabriela se dedica aos estudos sobre literacia midiática com trabalhos na UFJF e na Universidade do Algarve, em Portugal. Hoje, a pesquisadora coordena a equipe brasileira da Rede Interinstitucional Euroamericana de Competência Midiática para a Cidadania (Alfamed). Para ela, o Brasil enfrenta uma carência de políticas públicas assertivas tanto para ensinar a usar as mídias quanto para preparar os alunos para fazerem uma análise crítica desse uso. “A educação midiática não é só uma questão instrumental no sentido de saber mexer com a tecnologia, mas é também uma questão de preparar os alunos para uma análise crítica das mídias que vai ter um impacto na própria produção criativa que as crianças e jovens já estão fazendo para as redes sociais.”
A especialista defende que a educação midiática deveria perpassar todas as disciplinas escolares e não ser algo à parte. Em relação à discussão da proibição do uso de celulares nas escolas, Gabriela comenta que o tema também está presente nos debates em Portugal, local em que a professora vive com seu filho. Na posição de profissional e mãe, ela avalia que as experiências das escolas que optaram pela proibição do uso de celular no período de aula estão sendo positivas, as crianças voltaram a brincar juntas e a prestar mais atenção no ensino.
“Eu vejo isso com bons olhos. Não é uma proibição ao acesso, mas sim um incentivo a uma espécie de consciência ao que nós chamamos de dieta midiática, ou seja, do consumo midiático. As crianças estão tendo, cada vez mais cedo, acesso ao celular e vários estudos têm mostrado que o uso desenfreado dessa tecnologia gera vários problemas, incluindo de sociabilidade. Como os alunos ficam entretidos nos jogos e nos conteúdos consumidos no celular, eles não estão socializando no espaço escolar”, argumenta a professora.
A pesquisadora explica que a proibição é uma maneira de gerar consciência sobre o consumo e o vício midiático e é preciso ser implementada para analisar se será a alternativa mais eficaz. “Essa é uma forma de educar as crianças, ensinando que elas podem usar essa tecnologia, muitos jogos são interessantes e desenvolvem diversas competências de aprendizagem informal, como, por exemplo, resolução de problemas, mas a criança ainda não tem esse discernimento de perceber que muitas horas conectada vai, na verdade, perder o desenvolvimento de outras competências, como de sociabilidade, construção de sentimento e relações de outro nível que a internet não faz.”