Mais de 80% dos casos de síndrome gripal ficam sem testagem em Minas
Estado registrou mais de 125 mil notificações, entretanto, cerca de 20 mil amostras, ou 16%, foram coletadas para exames de Covid-19
Dos casos de síndrome gripal inespecífica – antes considerados suspeitos para coronavírus – em Minas Gerais, apenas cerca de 16% são testados na rede pública do estado. O levantamento foi realizado pela Tribuna com base nos números das amostras coletadas e das notificações. Até a última terça-feira (26), a Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) registrou 125.497 casos suspeitos notificados como Síndrome Gripal Inespecífica. Até esta data, 20.254 amostras para exames havia sido coletada. Em meio a pandemia do novo coronavírus e levantamentos que apontam aumento de síndromes gripais no estado, especialistas alertam para subnotificação da doença, enquanto defendem ampliação no número de testes realizados.
Desde o dia 14 de maio, a SES-MG retirou o número de casos suspeitos dos boletins epidemiológicos, informando que, de acordo com nova definição de caso preconizada pelo Ministério da Saúde e da própria pasta, os mesmos passariam a ser registrados no sistema de notificação como síndrome gripal inespecífica “por não preencherem, em sua integralidade, critério para investigação laboratorial”. A partir de então, esses casos serão acompanhados pelas vigilâncias epidemiológicas estadual e municipal, porém, deixam de ser tratados como casos suspeitos de Covid-19 e passam a ser síndromes respiratórias de interesse à saúde.
Conforme a SES-MG, seguindo orientação do Ministério da Saúde, a coleta de amostra e testagem é indicada para grupos específicos. São eles: amostras provenientes de unidades sentinelas de Síndrome Gripal (SG) e Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG); todos os casos de SRAG hospitalizados; todos os óbitos suspeitos; profissionais de saúde sintomáticos (neste caso, se disponível, a priorização é de teste rápido e para profissionais da assistência direta); profissionais de segurança pública sintomáticos (neste caso, se disponível, a priorização é também de teste rápido); por amostragem representativa (mínimo de 10% dos casos ou 3 coletas), nos surtos de SG em locais fechados (por exemplo, asilos, hospitais, etc); público privado de liberdade e adolescentes em cumprimento de medida restritiva ou privativa de liberdade, ambos sintomáticos; e população indígena aldeada.
Especialista destaca necessidade de ampliar diagnósticos
O que chama a atenção na situação de Minas é o fato de ser um dos estados mais populosos do Brasil – com mais de 21 milhões de habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – e ter poucos casos confirmados para coronavírus e taxa de mortalidade baixa em relação a outros centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, de acordo com o infectologista Marcos Moura.
É possível que determinadas características justifiquem o número baixo de casos no estado, como o fato de a logística no estado ser diferenciada, sem adensamentos populacionais e com centros urbanos que não têm transporte coletivo de massa (metrô e trem), além da grande área territorial, o que faz com que haja uma demora maior para disseminação do vírus. Conforme o especialista, há outras hipóteses relacionadas ao controle por parte dos profissionais da saúde e regimes de isolamento social que podem auxiliar no controle da doença. “Não necessariamente a doença não vai aparecer, mas ela está adiada porque tem medidas políticas, sociais, econômicas e de saúde que estão mantendo a curva achatada.”
Por outro lado, Moura destaca que é possível que haja uma estatística “mascarada” por conta do baixo índice de diagnósticos, sendo necessário ampliar a testagem para, desta forma, ter um real panorama da situação no estado. “Há uma burocracia em relação a notificação, aos óbitos e aos boletins informativos, além dos gestores terem uma preocupação em não extrapolar esses dados em excesso para diminuir as calamidades e o alarmismo. Diante disso, temos um baixo diagnóstico. Como é uma doença nova, precisamos de um diagnóstico definitivo, e se não temos esse diagnóstico definitivo, que são os testes de Covid-19, acaba entrando como doença respiratória.”
Segundo o especialista, historicamente, as doenças respiratórias se manifestam, em sua maioria, neste período de outono e inverno, entretanto, em 2020, houve um aumento significativo no número de notificações para doenças respiratórias. Tal crescimento pode ter ocorrido por dois fatores: um agente novo (coronavírus) ou mais pessoas buscando o sistema de saúde por conta do alarmismo em relação ao Covid-19. De toda forma, esta dúvida deveria ser sanada por meio da testagem.
“Para a história, é importantíssimo saber qual foi o impacto disso em casos e mortalidade, no estado e no município, porque isso só vai ser definido daqui um tempo se tiver diagnóstico. Se essas notificações continuarem como coisas inespecíficas, isso vai sumir”, explica. “Você pode ter uma leitura extremamente variada disso tudo, mas o mais correto, realmente, é testar todo mundo e saber se o aumento que surgiu como inespecífico realmente é Covid-19. A partir disso, verificar o que significa para a situação de Minas Gerais ou o que vai ser no futuro.”
Minas tem aumento de 648% nas mortes por SRAG
Em 2020, Minas Gerais teve um aumento de 648,61% no número de mortes por SRAG em comparação com a média dos três anos anteriores. O levantamento foi realizado por um grupo de cientistas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e aponta que, de janeiro a abril deste ano, morreram 201 pessoas cujo atestado de óbito registra Covid-19 como causa. Neste mesmo tempo, 539 óbitos no estado foram registrados como SRAG, que apresenta sintomas semelhantes ao novo coronavírus.
De acordo com o coordenador do estudo e professor da Faculdade de Medicina da UFU, Stefan Vilges de Oliveira, as síndromes respiratórias e outras infecções do trato respiratório acontecem de maneira sazonal, entretanto, as mortes que ocorreram neste ano “fogem dos padrões sazonais já estabelecidos”. A equipe científica da UFU realizou uma análise retrospectiva de 2017 a 2019, avaliando os valores máximos de registros de SRAG. A partir deste levantamento, verificou-se o aumento expressivo nos óbitos, o que pode ser indício de subnotificação de coronavírus em Minas Gerais.
A pesquisa mostrou, ainda, que o crescimento no número de mortes por SRAG começou a ocorrer no início de março, enquanto o primeiro óbito oficial por Covid-19 no estado aconteceu no final do mês. “Nós inferimos também que, potencialmente, já teríamos registro subnotificado nesse intervalo de tempo, dado esse grande volume de óbitos fora de um padrão esperado”, explica Stefan.
Como destaca o pesquisador, em uma situação de pandemia, o sistema de saúde tende a se tornar mais sensível para captar os casos de doenças, devido a mobilização de gestores em meio a emergência de saúde. Por haver especificidades de testes e diagnósticos, há dificuldade em se afirmar se os casos vieram a ser investigados como Covid-19 e descartados, porém, de toda forma, os números de casos de SRAG chamam a atenção.
“Logo no início da pandemia, nós tivemos uma grande dificuldade de diagnóstico. O Brasil ainda está com essa dificuldade, está entre os países que menos têm testado. O estado de Minas também está elencado como segunda unidade de federação que tem feito menor volume de testes. Nós estamos vivendo uma crise global quanto a questão de insumos e diagnósticos, e muitos desses casos, eventualmente, não tiveram acesso a diagnóstico laboratorial. Isso também não podemos afirmar com certeza, até porque muitos desses casos de síndrome respiratória aguda grave podem ter sido investigados para Covid-19 e, potencialmente, não ser identificado agente etiológico nessa amostra”, explica o professor.
Estado admite subnotificação
Em entrevista coletiva à imprensa na última terça, a SES-MG confirmou que há um caso a cada dez pessoas infectadas por coronavírus, admitindo que há subnotificação em Minas. Segundo o subsecretário de Vigilância em Saúde, Dario Ramalho, a transmissão de maneira assintomática, característica do vírus, é um dos entraves para o levantamento do número real de casos.
“Dentro de uma lógica de vigilância, é natural supor que você tem algum grau de subdetecção ou de subnotificação, isso em qualquer patologia. Em especial no caso da Covid-19, que transmite de forma assintomática, é muito natural supor (que isso acontece) de uma forma maior”, explicou.
Também durante a coletiva, o secretário de Estado de Saúde, Carlos Eduardo Amaral, informou que a capacidade de testagem dos laboratórios vinculados ao estado é de quatro mil testes por dia, entretanto, ainda não está sendo necessário testar em ritmo total. Na última semana, a SES anunciou a chegada de mais de 500 mil testes rápidos disponibilizados pelo Ministério da Saúde.
Em retorno à reportagem, a secretaria ressaltou em nota que, mesmo que a demanda não esteja excedendo a capacidade laboratorial do Estado, a alta procura para aquisição dos testes, em contexto de disputa internacional, é um dos fatores que dificultam a ampliação da testagem, a fim de direcioná-la para outros públicos diferentes dos especificados pela pasta.
Sobre as notificações de síndrome gripal inespecífica, a SES-MG informou que mesmo não realizando os exames em 100% dos casos, “possui mecanismos de controle capazes de avaliar o real cenário da doença. Um destes mecanismos é o acompanhamento diário dessas notificações”. A pasta ainda ressaltou que o número de óbitos por coronavírus no estado “é relativamente pequeno, em relação a uma pandemia tão grande e o sistema de saúde em Minas está preparado. É necessário compreender também as dificuldades para se realizar a testagem das pessoas diante de um cenário que é de escassez no mundo inteiro.”
Casos de SRAG
Segundo a SES-MG, há diversas hipóteses sobre o aumento de casos de SRAG, que pode também estar relacionado “à maior sensibilidade em notificar casos de SRAG, a circulação de outros vírus sazonais e a circulação da covid-19 na população mundial”. Ainda conforme a pasta, a SRAG é uma classificação de manifestação sindrômica, atribuída a outros agentes causadores. A classificação por associação ao SARS-CoV-2 (coronavírus) pode ser atribuída por meio de exames ou quadro clínico de caso diretamente vinculado a outro laboratorialmente confirmado.
A secretaria informou que diversas doenças respiratórias podem evoluir para SRAG, como asma, bronquite, pneumonia, tuberculose, intoxicação exógena, edema agudo de pulmão, câncer, além das gripes e do próprio coronavírus. “Ou seja, qualquer quadro de insuficiência ou dificuldade respiratória aguda que apresente febre (ou sensação febril) e ficou hospitalizado ou que evoluiu para óbito por SRAG independentemente de internação, é notificado como ‘SRAG hospitalizado’. Sendo assim, o caso grave de SRAG, que tiver indicações clínicas e epidemiológicas para coronavírus será testado para Covid-19”.
De acordo com a nota, a SES-MG acompanha as notificações por SRAG no estado desde 2009. “Em 2020, tivemos um número maior de notificações, mas esse aumento não refletiu linearmente na sobrecarga do sistema público de saúde.”
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