Cientistas criam startup de produtos fitoterápicos com espécies nativas da região
Empresa de Juiz de Fora está desenvolvendo produtos naturais para tratar doenças e tem objetivo de incentivar reflorestamento e geração de renda para produtores rurais
Ciência e mercado nem sempre caminham juntos. Levar o conhecimento produzido para além dos muros das universidades brasileiras é uma tarefa que muitas pessoas buscam tornar realidade. A jornada das cientistas Renata Mendes e Jéssica Leiras mostra que sim, unir as duas áreas é possível, mesmo que seja um longo processo. Uma nasceu em Cabeceira de Santana do Manhuaçu e a outra, em Rio Pomba, e as duas se conheceram no Curso de Farmácia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde começaram a pesquisar sobre fitoterápicos – medicamentos obtidos a partir de plantas. Dos estudos à criação da startup NAtiva, hoje as pesquisadoras e empresárias têm como objetivo desenvolver soluções inovadoras que promovam saúde e bem-estar a partir de ativos da biodiversidade brasileira, com o foco em plantas nativas de Juiz de Fora e região.
Há cerca de 15 anos, Renata e Jéssica trabalham juntas, desde a iniciação científica no Laboratório de Produtos Naturais Bioativos (Lpnb) da UFJF até a pós-graduação, sob orientação da professora Elita Scio, também co-fundadora da startup. Em janeiro de 2022, fruto desse trabalho, a NAtiva surgiu após as duas participarem do Emerge Amazônia, uma iniciativa da Emerge Brasil, em parceria com empresas renomadas, como Aché, Natura e Bemol, que buscava tecnologias feitas por pesquisadores brasileiros que tivessem vínculo com a biodiversidade amazônica. O projeto se encaixava na pesquisa de doutorado de Renata sobre uma espécie nativa da região, mas que também se encontra na Amazônia, que resultou no desenvolvimento de um fitoterápico para uma doença inflamatória com alta prevalência.
Entre 149 tecnologias brasileiras, a da NAtiva foi selecionada e a empresa recebeu um investimento para estruturar a empresa. A partir daí a NAtiva realizou o licenciamento desta tecnologia, que foi o primeiro na área de medicamentos feito na UFJF. O fitoterápico encontra-se em fase de escalonamento e um acordo de codesenvolvimento foi firmado com uma indústria brasileira referência em inovação – Laboratório Farmacêutico Aché.
Entre os diferenciais do produto desenvolvido por elas, estão a ausência de efeitos adversos, a ajuda no controle de infecção secundária contra bactérias que estão na pele e a redução de comorbidades da doença, diferentemente do anti-inflamatório que atualmente é usado como tratamento dessa doença, que traz inúmeros problemas, como, por exemplo, atrofia da pele.
“Nós buscamos pensar no indivíduo antes da doença. Em descobrir quais são as tecnologias da biodiversidade hoje que nós podemos fazer uso e vão trazer benefícios para a saúde, como antioxidantes que podemos usar para estar mais saudável ou cremes que dão aspecto rejuvenescido na pele, para também prevenir doenças que são comuns com o envelhecimento e fatores genéticos”, comenta Renata.
Além desse produto, as cientistas já estão trabalhando na elaboração de um fitoterápico produzido a partir de folhas de um arbusto nativo da Mata Atlântica, que será usado para tratamento de uma doença inflamatória sistêmica, que atinge grande parte da população, com difícil controle. Tanto as espécies estudadas quanto as doenças que serão tratadas não poderão ser citadas na reportagem por questão de contrato com as empresas parceiras da NAtiva. “Nós temos olhado com bastante peculiaridade para esse grupo de doenças imunomediadas, que possuem um componente imunológico e que a fisiopatologia dela afeta várias partes do organismo. Por isso, é importante olhar para os fitoterápicos, porque eles têm multiativos que vão ser capazes de modular essas multivias patológicas”, explica Jéssica.
Startup prevê gerar renda para pequenos produtores
Além do benefício para a saúde e o bem-estar, outro pilar da NAtiva é a sustentabilidade. De todos os medicamentos registrados no mundo entre 1981 e 2019, cerca de 50% são provenientes ou inspirados em produtos naturais. Apesar do Brasil ser o país com maior biodiversidade, esse potencial ainda é pouco utilizado. Os fitoterápicos também incentivam o reflorestamento. Jéssica explica que as espécies estudadas desempenham um importante papel na recuperação de áreas degradadas.
A intenção das cientistas é incentivar a recuperação de florestas para garantir a produção sustentável dos medicamentos em larga escala, de acordo com técnicas de manejo sustentável e conforme as leis ambientais, desde o cultivo da matéria-prima até o consumidor final. Além de melhorar a qualidade de vida dos pacientes, o projeto impacta os pequenos produtores rurais, através da geração de renda.
“A nossa região é rica em espécies. Estamos buscando cooperativas e produtores rurais que possam ofertar para a indústria a matéria-prima e gerar renda para a Zona da Mata. Ao mesmo tempo, levamos o produto para o mercado para uma parcela da população que tem uma doença crônica, que precisa usar esse medicamento o resto da vida, mas que encontra inúmeras dificuldades seja pelo alto custo das tecnologias ou pelos efeitos adversos presentes nos atuais medicamentos”, diz Renata.
Para as cientistas, o futuro é colaborativo
Desde o começo dessa empreitada, Renata e Jéssica participaram de cada detalhe, da escolha do nome até as inúmeras idas a áreas rurais da cidade para encontrar as plantas. No primeiro ano da startup, Jéssica conta que foi preciso viajar vários cantos do Brasil para entender melhor o negócio que estavam começando. Para elas, o futuro é colaborativo. “Fomos para o Norte, visitamos o Inpa, fomos entender como estavam as iniciativas voltadas para biodiversidade no cerne da maior floresta tropical do mundo. Visitamos indústrias. Nós fazemos questão de participar de todas as etapas, desde conversar com produtor rural até estar em grandes eventos.”
Muito do que construíram até hoje tem origem nas suas raízes. As duas ressaltam que cada passo tem sido dado com o apoio e exemplo de figuras femininas fortes nas suas vidas, como suas mães. “O apoio da nossa família faz toda a diferença para nós que estamos nos propondo a fazer a diferença para o mundo”, diz Renata.
Todo esse trabalho foi reconhecido pelo Programa Mulheres Inovadoras, uma parceria entre a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A NAtiva foi uma das quatro selecionadas na região Sudeste para o programa que tem o propósito de impulsionar startups lideradas por mulheres, promovendo a diversidade no cenário empreendedor nacional por meio de capacitação e reconhecimento. Além disso, a startup também ganhou o prêmio de startup destaque no programa InoVAtiva de Impacto Socioambiental, o maior projeto de aceleração gratuito para empresas inovadoras da América Latina.
Atualmente, a empresa está focada na elaboração da Plataforma NAtiva, que atuará como um banco de dados e insumos vegetais projetado para aprimorar a descoberta de novos bioativos. De acordo com as pesquisadoras, elas estão estabelecendo parcerias na Zona da Mata Mineira para avançar na identificação de potenciais cadeias produtivas e na criação de modelos agroecológicos, por meio do plantio de florestas com espécies nativas. A expectativa é que a partir desses insumos, medicamentos, cosméticos e outros fitoprodutos sejam lançados no mercado e, para isso, a startup está aberta a parcerias com outras empresas que queiram trabalhar com biodiversidade.
“Juiz de Fora tem uma vocação rural. Se conseguirmos trazer o olhar de grandes empresas para cá focadas na nossa biodiversidade regional, isso abre uma perspectiva para gerar cadeia de valor e até mesmo trazer indústrias para a nossa região”, diz Renata.