“A essência da visão de mundo africana é a vida”

Por Lucimar Brasil

Há dois séculos, o país de onde ele vem era conhecido como Reino de Daomé, na costa oeste da África, que foi destaque recente nas telonas na produção A Mulher Rei, estrelada por Viola Davis. Natural do Benin, país colonizado por franceses, o professor formado em Geografia com mestrado e doutorado em Educação, ambos cursados em universidades brasileiras, entre elas a UFJF, Senakpon Kpoholo, explica, nesta entrevista, porque tem se dedicado a difundir a visão de mundo e a cultura ancestral africana, sobretudo através da escola virtual que criou em plena pandemia, a Axovi Educação. Há 11 anos no Brasil, casado com uma juiz-forana, pai de cinco filhos, ele conta que já foi vítima de racismo e que sonha em voltar para casa, levando o desejo de desenvolver a Educação em seu país.

Senakpon Kpoholo

Qual é a essência da visão de mundo africana?

O ser humano. Muitas vezes, quando falo visão de mundo africana, as pessoas não entendem. Foram acostumadas com as fragmentações que vieram a partir da escravidão e, depois, da colonização. Desconhecem que, em algum momento histórico, a maioria das etnias africanas já conviveram em harmonia. Não tinham esse costume de se matar, se guerrear. Isso começou quando o sujeito ocidental veio e, com muita malícia, ressaltou as diferenças, para separar as pessoas e atingir seus objetivos. Gosto bastante de voltar para Kemet, um dos maiores impérios já conhecidos, e que vai ser sempre o Complexo Kemet/Núbia. Não é só o Egito Antigo. Nossos ancestrais não chamavam de Egito. Egiptus é uma palavra de origem grega. O que permitiu a convivência de inúmeras nações ou etnias foi a nossa visão de mundo. Ela é esse primeiro olhar sobre a natureza na qual os primeiros seres humanos surgiram e viveram. Não há como deixar de ver nela a abundância. E ao percebê-la, você se relacionará com a natureza e com a sociedade com base na ideia de que há o suficiente para todo mundo. Você só precisa se movimentar, para ir ao encontro daquilo que é bom para você.

Então, nesse processo, nós colocamos o ser humano no centro, porque a natureza é. Nós somos a natureza, então nós também somos. E quem é esse ser que eu sou? O que é bom para mim e o que não é bom para mim? O que posso fazer para manter minha comunidade em harmonia e manter essa harmonia com a natureza? Essa visão é a base das culturas africanas. Ela unifica tudo o que chamamos de tradição. Por isso, quando estou conversando com uma pessoa da etnia Zulu, sendo eu da etnia Fon, nossos valores se encontram rapidamente, mesmo que a língua seja diferente. A diferença étnica só aparece, porque isso foi reforçado pela colonização. Nossa visão de mundo está baseada no ser e tudo aquilo que é. Eu falei do ser humano sim, mas você pode transcender e percebê-la em tudo aquilo que é, em tudo o que carrega vida. É a própria vida.

Quais foram os maiores prejuízos do processo de colonização? 

O processo de colonização seguiu um caminho que identificou muito cedo as situações tradicionais que garantiam a sobrevivência dessa visão de mundo ou a sua continuidade. A primeira delas foi a educação ancestral africana, feita em casa, mantida pelos pais, mães e irmãos. Ela foi quebrada, substituída ou sobreposta por uma educação ocidental individualista.  Quando o africano sai de casa, ninguém diz “meu caderno”, “meu lugar”, “meu assento”. Na educação tradicional, na educação ancestral, nós temos uma sociedade. Brinco que não é comunismo, é comunitarismo. Estamos numa sociedade comunitária em que cada um tem que zelar pelo outro, sem anular sua individualidade.  Já a educação ocidental é baseada na visão materialista, no ter, enquanto a educação ancestral unifica as pessoas ao permitir que olhem para essa vida em comunidade. É difícil vencer quem vive assim. Então, o primeiro passo dos colonizadores foi destruir, enfraquecer esse caminho educacional, quebrando a cadeia de transmissão e impedindo que os mais velhos transmitissem conhecimento pela via de iniciação, que, inclusive, foi taxada como coisa do demônio, como coisa do diabo, e não como um processo organizado para apoiar o jovem que está chegando na idade da razão.

Depois, atacaram também o sistema espiritual baseado na ancestralidade e na crença da existência de um Criador supremo, único. Inventaram que a gente é politeísta. Não somos. A primeira vez nesse planeta que foi falado da existência de um Deus único foi no continente africano. Os ocidentais aprenderam com os africanos que há vida após morte e que há um Criador supremo. Ocorre que nós temos milhares de línguas no continente africano e cada uma fala de Deus no seu idioma. Nesse aspecto, o ocidental, vamos dizer assim, tem dificuldade em lidar com a complexidade, com a multiplicidade, com a diversidade. Quer juntar tudo para esvaziar. O ser supremo que a tudo criou tem o poder de se manifestar em toda a sua criação, de várias formas. Aí temos um monoteísmo polimórfico. Quando chega a esse ponto, o pensamento ocidental se perde completamente. Quem não tem como entender a complexidade entra nesse jogo. Então tudo foi taxado como coisa do diabo, quebrando o segundo caminho que fortalecia a visão de mundo em sua transcendência. Para nós, há algo que vai além da matéria.

A terceira coisa que quebraram foram as nossas instituições políticas, a forma como se resolvia problemas. Os tribunais não eram esses que vemos hoje, porque eram pautados no respeito à harmonia e ao equilíbrio da natureza, através de exaustivas discussões até que tudo ficasse esclarecido. A democracia não se limita a elegermos um sujeito e renovar isso de cinco em cinco anos. E quando o outro entra quer quebrar tudo aquilo que o anterior fez para dizer que faz melhor.

A língua foi o quarto aspecto enfraquecido pela colonização. Felizmente, muitas ainda estão presentes e ajudam a manter nossa visão de mundo que é inerente a elas. Digo que as tradições não são fixas. Como as coisas podem mudar na natureza, as sociedades também mudam, mas olhando para a vida, preservando a vida. E hoje a gente precisa, por meio da educação, voltar a ensinar tudo isso para as pessoas, porque a falta desse conhecimento está criando muitos problemas.

Incluindo problemas no tocante à saúde mental?

Sim. Nessa sociedade ocidental que vende o progresso, as pessoas não param para sentir a carga emocional ou a carga espiritual das palavras. Quando você fala de progresso, fala de avanço e qualquer movimento que não seja assim, as pessoas qualificam de retrocesso. A gente não vê a vida assim. Nós a vemos como um ciclo, como um vai e vem. Temos uma metáfora da vida que é um rio. Sempre em movimento, sem seguir uma linha reta, mas ciente que vai desaguar no mar. As coisas vão e voltam, tudo se reinventa, se recria. Baseadas na ideia de progresso, as pessoas têm uma ideia de tempo linear. A gente vê o tempo como ciclos. Uma mangueira dá fruto no período próprio. Quando não aguenta mais viver, e antes de morrer, suas sementes já brotaram em outro lugar. Como parte da natureza, o ser humano também vive esse mesmo processo. Pelo menos é assim que nós compreendemos na visão de mundo africana. Ao não perceberem isso, as pessoas ficam apressadas, ansiosas e depressivas. É óbvio que depressão tem a ver com muitos outros parâmetros, mas tem muita gente que estaria muito melhor em termos de saúde mental, emocional se voltasse a se relacionar melhor com o próprio tempo. Tudo nasce, cresce, amadurece, morre e renasce.

 O mundo está mais atento à África hoje?

O mundo, como sempre, olha em termos de interesse mercadológico, porque o continente africano sempre carregou a humanidade em suas costas. Não à toa, a vida humana começou lá. Tem todos os recursos em abundância, tanto na superfície quanto debaixo do solo. Todo mundo sabe que se tirar a África da equação, a sociedade como a conhecemos não sobrevive, porque quase tudo vem do continente africano. A grande mídia produz uma imagem estereotipada, vendendo guerra, miséria e fome, para seguir na ideia de dominação. Só que, por outro lado, tem gente começando a entender que, apesar de tudo isso, nós sempre fomos um povo alegre, um povo feliz, um povo realizado. Eu duvido que você encontre um lugar em que tenha menos doenças mentais do que no continente africano, porque nossa visão de mundo é diferente.  Esse ocidente que promete modernidade, pós- modernidade, está levando a gente pra lugar nenhum. As pessoas vivem com medo de tudo. Medo de encarar o que está fora, de se expor, de encarar suas vulnerabilidades, de amadurecer na vida.

 Você já vivenciou o racismo no Brasil?

Quando cheguei, levei um tempo para perceber realmente que o país tem uma estrutura bastante racista. Você vê pessoas que atravessam a calçada, porque tem um grupo de pretos chegando. Você entra numa loja e seguranças ficam andando atrás de você. Isso aconteceu comigo em Juiz de Fora, quando estava comprando roupas e tênis no shopping, a ponto de um deles me questionar o que eu fazia lá. Quando descobriu que sou estrangeiro e era professor universitário na época, até se ofereceu para pegar um cesto para que eu colocasse as coisas que estava escolhendo. Isso doeu, mas não me deixei levar, porque tenho uma raiz africana muito forte.

Recebi um conselho fundamental para ampliar minha consciência sobre raça e sobre a vida: “finque o pé nas suas raízes”. O senhor concorda com isso?

A ancestralidade é a nossa base e a base de todo o povo. Quando vejo, por exemplo, no Brasil, os ancestrais africanos que lutaram com unhas e dentes para se libertar, muitos deles tinham a expectativa de  voltar, ou  que,  pelo  menos sua  descendência voltasse para casa. Um descendente africano que consegue prosperar financeiramente ou, pelo menos, ter uma vida decente – sem generalizar -, não quer ir à África. Prefere ver a Torre Eiffel. Eu digo: prosperem e voltem para a terra de onde vieram seus ancestrais. Se você reconhece que tem um pouquinho de sangue africano, e acho que todo mundo nesse planeta tem, porque os primeiros humanos saíram do continente africano, então, volte para lá e se reconecte com essa terra e com o espírito dos seus ancestrais. Isso é muito importante.

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil é jornalista (UFJF) com formação em Impacto Social (Instituto Amani e Gera Social) e em Liderança para Mulheres Pretas (Academia Firminas). Empreendedora, é responsável pela Gente de Conteúdo Comunicação e pelo próprio blog www.lucimarbrasil.com.br, onde publica artigos de diversas inspirações.

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