Ser negra é uma vocação

Entre pretas e pardas, somamos mais de 60 milhões de brasileiras. Integramos o contingente populacional mais numeroso do país. Não estamos aqui para sofrer, mas para transcender.

Por Lucimar Brasil

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Na tarde de domingo passado, o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas foi palco para a apresentação de histórias de resiliência, acolhimento e de muita esperança ativa em atividades do Julho das Pretas. Foto: Revista Espelho Nosso

 

 

LUCIMAR BRASIL

Jornalista

 

Muita gente pode pensar que o título desta coluna não passa de uma frase de efeito típica de uma mulher parda privilegiada, identificada com o corpo, que nasceu em meio a uma família de baixa renda, mas estruturada, teve acesso a uma boa educação gratuita (em colégio particular, de fato, cristão), contou com uma rede amorosa de apoio na vizinhança do morro, cursou universidade pública e ocupou cargos de liderança em todos os ambientes profissionais que frequentou.

Assim, é realmente fácil simplificar uma questão tão complexa, envolvendo raça, gênero e uma série de outras interseccionalidades de forma até romanceada, dirão alguns, a considerar a dura realidade de um país marcado pela desigualdade social em relação às mulheres negras, incluindo integrantes do universo LGBTQIAP+. Porém, a indagação mais ampla é: quem disse que o caminho vocacional se restringe à esfera pessoal, ao atendimento de um ideal egocêntrico? Não seria ele, antes de tudo, algo que só se realiza efetivamente no serviço ao coletivo, para que todos tenham vida em abundância?

Por isso, a negritude bem-aventurada grita firme e insistentemente em minha alma, para que eu a reconheça e a acolha como vocação, diante de um movimento histórico que se identifica cada vez mais como o “espírito do tempo”. Entre pretas e pardas, somamos mais de 60 milhões de brasileiras. Integramos o contingente populacional mais numeroso do país. Vivemos na incômoda base da pirâmide social oprimidas pelos diferentes estratagemas arquitetados por uma sociedade racista, misógina, homofóbica e patriarcal que não nos quer livres. Ainda assim, é neste inóspito lugar, que está sendo incubada a semente da verdadeira transformação, em mais uma prova da resiliência e da coragem que tanto caracterizam nossa trajetória ancestral.

Não por menos, a segunda edição do Informe MIR (Ministério da Igualdade Racial), destinada especificamente a essa parcela da população, destaca: “organizações de mulheres negras têm sido protagonistas em importantes mudanças sociais no país, especialmente no enfrentamento da violência e das desigualdades raciais. Isso demonstra que mulheres negras são fundamentais na formulação e na implementação de estratégias de superação da pobreza e de desenvolvimento social, apresentando-se coletivamente como portadoras de soluções e de mobilização social pelo bem viver”.

Prova inequívoca é o Julho das Pretas, a maior agenda conjunta e propositiva de incidência política de organizações e movimentos de mulheres negras no país, na qual Juiz de Fora, felizmente, está inserida. Iniciada em 2013, em Salvador (BA), pelo Odara – Instituto da Mulher Negra – uma organização feminista, centrada no legado africano -, a iniciativa surgiu como resposta às homenagens vazias, ou seja, desconectadas de práticas capazes de promover transformação social, a partir da instituição do 25 de julho como Dia da Mulher Afrolatino-americana, Afrocaribenha e da Diáspora. Desde 2014, a data também marca, no Brasil, o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.

Graças ao esforço coletivo, o Julho das Pretas, em Juiz de Fora, tem propiciado encontros emocionantes de muita partilha sincera, acolhimento, a partir de ações incríveis, como o Projeto Descendentes Afro, desenvolvido por um grupo de alunos da Escola Estadual Fernando Lobo, sob orientação da professora Nilhian Gonçalves de Almeida, e apresentado no último domingo, durante tarde de atividades no Centro Cultural Bernardo Mascarenhas. Intitulado “Debaixo dos caracóis de seus cabelos pixaim, uma história para contar de: arte das tranças, luta e empoderamento”, o projeto envolve quase toda a instituição em reflexões sobre cabelos e tudo o que eles representam do ponto de vista estético, social, psicológico e pedagógico na construção das múltiplas identidades.

Ouvir jovens falando com tanto autoconhecimento e entrega sobre o tema só fez reforçar a ideia de que mais do que vítimas de excessivas maldades, somos também a parcela da sociedade capaz de mudar as regras do jogo, dando um sacode no tabuleiro, inspiradas pela célebre frase de Angela Davis. Afinal, quando a base de uma pirâmide se movimenta, segure-se quem puder. Ainda mais quando isso se dá de forma organizada e apoiada por mulheres e homens não negros, como visto cada vez mais em eventos do Julho das Pretas.

Nesta quinta-feira, dia 25, a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver ocupará ruas do Centro de Juiz de Fora, com concentração no Parque Halfeld, a partir de 17h, saída às 18h e encerramento na Praça Antônio Carlos. Mais do que um convite à celebração do feminino negro, a iniciativa é uma oportunidade à reflexão sobre o legado que está sendo construindo coletivamente, de um jeito que só mulheres sabem fazer, ao tecerem, na urdidura de uma tapeçaria perversa, traçados que apontam caminhos para a libertação. Não, não é fácil. Mas quem ousa dizer que não é possível quando se tem a vocação tatuada na pele?

AGENDE-SE

Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver

Quinta-feira, dia 25 de julho – Concentração no Parque Halfeld, a partir de 17h – Saída às 18h com encerramento na Praça Antônio Carlos.

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil é jornalista (UFJF) com formação em Impacto Social (Instituto Amani e Gera Social) e em Liderança para Mulheres Pretas (Academia Firminas). Empreendedora, é responsável pela Gente de Conteúdo Comunicação e pelo próprio blog www.lucimarbrasil.com.br, onde publica artigos de diversas inspirações.

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