Terminadas as celebrações pelo Novembro Negro, com o inédito feriado que marcou o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, acrescido de manifestações políticas, culturais, artísticas que desafiaram a sociedade brasileira a repensar o racismo e suas nefastas consequências para a humanidade, bem como a reconhecer a enorme contribuição das pessoas negras ao longo da História, gostaria de chamar a atenção para um outro tema que precisa ser igualmente discutido por estar intrinsecamente ligado à pauta antirracista: a branquitude.
“Fala-se muito na herança da escravidão e nos seus impactos negativos para as populações negras, mas quase nunca se fala na herança escravocrata e nos seus impactos positivos para as pessoas brancas”, afirma a psicóloga e escritora eleita pela revista The Economist como uma das vozes mais influentes do mundo no que diz respeito à promoção da diversidade, Cida Bento, autora do celebrado “Pacto da Branquitude” (Companhia das Letras). A publicação, lançada em 2022, é um convite ao mergulho pelo universo narcísico que acha feio tudo o que não é espelho, como poetizou Caetano Veloso, e que perpetua a violência racial no país por seguidas gerações.
“Eu trabalho mesmo com o conceito de um pacto não verbalizado, mas que mantém as pessoas, o mesmo segmento, em geral, masculino e branco, nos lugares de poder do país em todo tipo de instituição. Não é um acordo. Uma coisa combinada. Eu sempre digo isso e acho bem importante dizer que não é que as pessoas se encontrem às cinco da manhã para combinar, mas nas diferentes instituições se tem o mesmo perfil de pessoas liderando, e liderar significa tomar decisões que influenciam o país”, afirmou Cida Bento em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura.
Essa supremacia branca não se restringe aos órgãos dos Três Poderes, mas se espalha por empresas, instituições do Terceiro Setor, organizações religiosas, instituições de ensino e por aí afora. Além de fortalecer o mesmo grupo de iguais, esse pacto narcísico da branquitude, segundo a autora, exclui quem não faz parte dele, alimentando a falácia do discurso meritocrático. Afinal, pensar em meritocracia numa sociedade reconhecidamente racista é, no mínimo, mais um contrassenso que assinala o traço perverso dos que insistem em perpetuar as desigualdades.
“Ao mesmo tempo em que busca isentar e proteger seus interesses, o grupo branco tende a desvalorizar os negros e a culpabilizá-los pelo seu ‘fracasso’. Assim, negros são julgados com muito mais rigor e suas falhas justificariam a exclusão e o racismo a que são submetidos. Sob a narrativa de que direitos fundamentais são garantidos a todos, os brancos se eximem de ter que se deparar com o fato de que tais direitos só são reais e disponibilizados aos brancos”, escreve a professora Carla Cristina Carvalho Pereira, no livro “Ubuntu se faz com Sankofa: Pretuguês básico para a luta antirracista”, publicado com recursos do Edital Quilombagens da Lei Murilo Mendes (2022). Recomendo muito a leitura dessa obra que traz também reflexões riquíssimas de Ana Paula dos Santos e Giovana de Carvalho Castro.
Assim naturalizada, a branquitude, cercada de seus privilégios e da ideia de superioridade cultivados ao longo do período escravocrata e convenientemente mantidos até hoje, ignora visões de mundo diferentes, produzindo violência crescente de toda ordem, incluindo física, moral, psicológica, social, econômica, ambiental, dentre tantas outras. As estatísticas estão aí para não me deixar mentir, assim como comportamentos questionáveis de pessoas que se intitulam “do bem”.
Recentemente, um homem branco quis saber:
“Posso te fazer uma pergunta indiscreta?”- disse, se dirigindo a mim. E continuou: “seu filho é adotado”? Ao que eu questionei: “por que você pensa assim”? Ele respondeu: “é que a pele dele é bem clarinha, né”? Ou seja, esse cidadão sequer cogita a possibilidade de que meu filho seja fruto de um casamento inter-racial. Talvez, porque nenhum homem branco (no caso, ele) se interessaria afetivamente por uma mulher negra. Para meu interlocutor, é mais fácil pensar em algo menos comum, como a adoção de uma criança branca por uma pessoa negra, do que imaginar que o pai do meu filho pudesse ser branco como ele.
É por essas e outras, a exemplo dos inúmeros casos de brancos querendo recriar a máxima do “salvador de pretos” (em novembro, esse tipo aparece aos montes), que considero imprescindível discutir uma data para a instituição do Dia Nacional da Branquitude. Quem sabe assim, esse grupo terá, pelo menos, 24 horas ao ano, para repensar seus espaços de privilégio construídos à custa da violência racial ao longo de séculos. Para repensar sua real falta de interesse pelos valores que lhes são diferentes e, sobretudo, para avaliar as atrocidades que comete diariamente pelo culto à ignorância, pela preguiça de estudar e pela soberba em relação à própria história do país verde e amarelo que tanto adora chamar de seu. Será isso amor?