A gente se conheceu durante a pandemia de Covid-19, para a leitura coletiva de um dos livros mais inspiradores a que já tive acesso e que me ajudaram a desenvolver uma personalidade mais criativa, amorosa, consciente ou, pelo menos, a seguir em direção a ela.
Escrito pela romancista, dramaturga, compositora e poeta, a norte-americana Julia Cameron, “O caminho do artista” uniu, pela primeira vez, profissionais de norte a sul do país que amam palavras, no clube de leitura da Levante 42, escola para formação de gente criativa, conectada com as dimensões mais elevadas de si mesma e aberta a aprender coletivamente. Já falei dela aqui.
A sinergia foi tanta que vários outros momentos de leitura conjunta se sucederam e um deles terminou, dias atrás, quando finalizamos “A arte da escuta”, da mesma autora que virou nossa musa inspiradora.
Impossível não associar essa arte que Julia nos propõe à pauta antirracista, sobretudo, porque estamos falando de um novo método de transformação pessoal e criativa baseada na importância de escutar a si mesmo, os outros e o mundo à nossa volta.
“Quando escutamos, somos guiados espiritualmente. Ao escutar nossa voz interna, nos tornamos mais fiéis a nós mesmos. A franqueza se torna nosso guia. E quando nos tratamos com sinceridade, também lidamos com os outros de forma mais verdadeira”, escreve a norte-americana no prefácio.
A metodologia que inclui a escrita das “Páginas matinais”, “O encontro com o artista” e “Caminhadas” pressupõe, inicialmente, um movimento de fora para dentro. O primeiro passo é escutar o mundo à nossa volta, seguido de escutar os outros, escutar nosso eu superior, escutar além do véu (da morte), escutar nossos heróis e, finalmente, escutar o silêncio.
Essa sequência traz a lógica, pelo menos na minha avaliação, de que nossa identidade está no centro desta experiência influenciada pelos fatores externos e internos, como as crenças que nos limitam a viver com mais verdade e liberdade. Reconhecê-los é fundamental, para que retiremos as camadas acumuladas ao longo de nossa existência e que não mais combinam com os novos tempos.
Entre elas, a forma como a sociedade brasileira foi doutrinada a olhar para a população negra. E, claro, que muitas pessoas, ao longo da História, sentiram um enorme e mórbido prazer em usar essa lente distorcida da humanidade, afinal, a prática rendeu e ainda rende muitos lucros.
Hoje, porém, somos instigados a rever a visão fragmentada que norteou essa percepção, principalmente, nós, pretos e pardos. O que o mundo à nossa volta anda dizendo? Como isso influencia o olhar que temos sobre nós mesmos? O que a ancestralidade que pulsa em nossas veias tenta nos dizer diariamente? Estamos abertos a ouvi-la? Quem são os heróis a quem estamos dando crédito?
Sim, fomos e somos vítimas de uma história brutal, mas não precisamos mais seguir assim, esperando pela caridade de alguém que nos tire do flagelo em que nos colocaram. Com certeza não será fácil abandonar esse personagem, até porque no grid de largada da corrida da vida ocupamos as últimas posições. As estatísticas econômico-sociais estão aí para não me deixar mentir.
Entretanto, a arte da escuta nos convida a apurar todos os outros sentidos a partir dos ouvidos. Inclusive, para identificar práticas racistas que fomos acostumados a relevar ou mesmo a nem dar conta delas. Ou a gente assume o protagonismo das nossas próprias pautas, sejam elas individuais ou coletivas, ou seguiremos escravizados pela ideia de que a liberdade é algo que se ganha, não que se conquista.
Recentemente, em uma palestra sobre regeneração do planeta (só deixar de agredir não será suficiente para garantir a sustentabilidade da vida na Terra), ouvi a convocação para a adoção de práticas radicais em uma nova forma de lidar com pessoas, animais, minerais, plantas. Para quem tem alguma aversão à palavra radical, convido a um mergulho no dicionário que diz: “relativo ou pertencente à raiz ou à origem; original”.
A arte da escuta é essa ferramenta indispensável que nos auxilia no retorno à compreensão mais ampla de nossa essência humana, de nossa originalidade. Escute Julia Cameron. Assim como os povos originários, ela sabe o que diz.