O brasileiro tem um hábito, digamos espartano, do qual tende a se orgulhar bastante: aproveitar sobras de comida para fazer um belo banquete. Não sei se por vivermos desde sempre à beira de alguma escassez, ou por um universal senso de responsabilidade em relação aos alimentos. Espírita, budista, cristão ou ateu, todos sabemos que desperdiçar comida é pecado.
E por “belo banquete”, degustante leitor, subentenda-se aquela pizza sobrevivente da noite anterior, resgatada da geladeira, fria mesmo, com um café quentinho no alvorecer. O arroz com feijão restante do almoço que, à noite, estalado um ovo e salpicados uns tomatinhos, aquece o bucho em frente à TV para posteriores e veneráveis cochilos.
São infinitos os ingredientes e as formas de preparo do que se convencionou chamar de “enterro dos ossos” – um amigo aproveitava as sobras do churrasco em uma travessa com manteiga e muita cebola, ainda ao fim do bacanal alimentício, e chamava de “cemitério”. Mas não há enterro mais canônico do que aquele feito com as sobras da ceia de Natal.
Começa-se pela maçã que na noite feliz apenas adornou a mesa farta, restando intacta e desprestigiada ao lado do pernil. Ela é a primeira redenção dos ressaqueados na manhã que se espreguiça com a algazarra das crianças e seus regalos do Bom Velhinho. No almoço vem a maionese geladinha com arroz, na noite o frango desfiado que vira molho de macarrão.
Menos que as vantagens proteicas e gastronômicas, refestelado leitor, valem todavia no enterro dos ossos os sabores trazidos à memória desde a noite anterior. O cheiro dos abraços daqueles que há muito não víamos. Da reconciliação e das inevitáveis farpas. Da saudade que, rumo à cama, barriguinha cheia e coração feliz, já se anunciava no apagar das luzes do quarto e do ano que oficialmente iniciava seus ritos fúnebres.