As redes sociais foram inundadas por imagens de capas de álbuns expandidas na semana passada. Usuários utilizaram inteligência artificial generativa para “completar” o que não estava na fotografia, gerando composições maiores do que os originais. De “Abbey Road”, dos Beatles, a “Teenage dream”, de Kate Perry, passando por “Master of puppets”, do Metallica; de “Chega de saudade”, de João Gilberto, a “É o Tchan do Brasil”, do É o Tchan, passando por “Cabeça Dinossauro”, dos Titãs, não faltou gente brincando de “completar” as capas dos álbuns.
Os mais inspirados, na não requisitada opinião deste cronista, preto no branco, foram as versões expandidas do “Black album”, do Metallica, e do “White album”, dos Beatles. Justamente porque não sugerem nada. A recriação de “Nevermind”, do Nirvana, coloca o famoso neném pelado nadando no fundo do mar. Na minha cabeça, ele sempre esteve mergulhado em uma piscina, um ser humaninho em ambiente controlado se afogando desde cedo atrás do dinheiro. Fico com a versão original. Mas não tenho mais como desver o que vi, de forma que minha imaginação estará doravante em eterno conflito com a imaginação da inteligência artificial. Ela que lute.
Em que pese o fato de ser um curioso exercício hipotético, a brincadeira acendeu em meu cocuruto uma velha afeição pela fotografia como arte da precisão e da sugestão. Quando um fotógrafo recorta uma cena no mundo real e a eterniza em um quadro, ele quer comunicar algo com aquela imagem. E se ele deixou de fora o que deixou, foi por algum motivo. Mas aquilo, entretanto, ainda estará lá, como sugestão. Porém, como ensinou o escritor argentino Julio Cortázar, mestre do corte, o fotógrafo de gênio faz ver na foto o que nela não está. Na precisão vibra a sugestão.
Naturalmente, não acredito que uma brincadeira como essa da expansão das capas dos álbuns seja uma traquinagem maléfica da inteligência artificial contra nosso poder imaginativo. É apenas um sintoma da contemporaneidade. É divertido, dá “likes, shares, comments”, rende assunto para mesa de bar e até para uma crônica. Mas também não me impede de pensar na nossa crescente preguiça justamente de… pensar. De tentar enxergar além do óbvio. De adivinhar, naquele sentido etimológico que remete ao divino, o que não está explicitamente posto.
Se no mundo hipertecnológico que ora habitamos não há mais espaço para mistérios e dúvidas, se tudo se desvela, é preciso estabelecer contrapesos que conservem a capacidade de sonhar, de entrever o que não existe, de inventar, enfim. Como disse o nunca suficientemente citado Vladimir Nabokov, se não há arte sem fatos, tampouco há ciência sem imaginação.