Sonhos soterrados

Por Marcos Araújo

Imagine morar na mesma casa, no mesmo bairro, durante a vida inteira. Imagine que lá você cresceu e viu seus pais envelhecerem. Imagine que lá você se apaixonou, se casou e teve filhos, que também estavam crescendo lá. Imagine que, apesar da vastidão do mundo, lá seja o único lugar para o qual tenha vontade de voltar quando tudo parece estar perdido. Imagine que lá seja o lugar onde todas as suas memórias afetivas estejam guardadas, onde você encontra seus amigos de infância, onde fica a rua em que aprendeu a andar de bicicleta, onde bateu bola e brincou de pique. Imagine que lá seja o único lugar onde você sinta que realmente faça parte de um lugar, de uma família, de uma comunidade.

Agora, imagine que todo esse “lá” esteja ameaçado e possa desaparecer como um passe de mágica, dentro de um buraco, levando para baixo toda a sua vida. Imagine que, forçadamente, você seja impedido de habitar esse lugar. A impotência diante dessa tragédia anunciada, imagino eu, deve ser o sentimento de quem viveu no Bairro Mutange, em Maceió, e teve que abandonar tudo, já que o chão, que deixou de ser terra firme, começou, milimetricamente, a ceder. Toda a região atingida pela exploração de sal-gema agora não passa de escombros e ruínas, e suas casas e ruas vazias tornaram-se símbolos de uma catástrofe urbana, social e ambiental. Essa paisagem agora lembra uma cidade fantasma. Cerca de 60 mil moradores foram afetados por obras de mineração subterrâneas, que, ao longo do tempo, contaram com o silêncio de autoridades.

O caso de Maceió não é único nem isolado. É impossível esquecer e não fazer relações com o que aconteceu em Mariana e Brumadinho. Todas essas situações poderiam ter sido freadas antes da catástrofe caso medidas responsáveis e proibitivas fossem tomadas em atenção aos relatórios de alerta. Todos nós, enquanto sociedade, precisamos refletir sobre ser justo que alguma empresa ou atividade financeira fique acima dos interesses coletivos. É preciso, porque já passou da hora, que saibamos o valor do nosso voto, pois é inadmissível que continuemos a colocar no poder agentes políticos que não sejam capazes de frear desejos avarentos, ou pior, que trabalhem de mãos dadas com interesses corporativos. Sem nossa conscientização será difícil, para as gerações futuras, tirar nossa responsabilidade de tantos destroços que ficarão à deriva como emblemas de um passado imprudente.

Não sei se é inocência ou até um pouco de otimismo, mas penso que nossa história tem muito a nos ensinar. É necessário olhar para trás, enxergar os erros em cada detalhe e fazer disso um modo de aprender. Exemplos não faltam. Já não tem mais cabimento que todos assistam, de forma passiva, o afundamento de uma cidade, de casas que um dia foram habitadas e cheias de vida. Não tem mais cabimento que os sonhos de muitas pessoas sejam soterrados em virtude da ganância alheia.

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Marcos Araújo

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