Ana Paula El-Jaick borra os limites entre real e ficção em ‘Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento’

Professora do Departamento de Letras da UFJF resolveu escrever uma autoficção, mas o que ela queria mesmo era, justamente, ironizar o gênero

Por Marisa Loures

Ana Paula El Jaick crédito Eliane Heeren
Ana Paula também é autora de “Faz duas semanas que meu amor” (Summus, 2008) e “Tríptico” (Edições Macondo, 2017) – Foto de Eliane Heeren

De repente, a autoficção está na moda. Termo usado pela crítica literária para se referir a uma espécie de autobiografia ficcional. O gênero virou tendência na literatura contemporânea e ganhou espaço, inclusive, no meio acadêmico. Ana Paula El-Jaick, professora do Departamento de Letras da UFJF, resolve escrever uma autoficção, mas o que ela queria mesmo era, justamente, ironizar o gênero. Borrar os limites.  Assim, ela entrega aos leitores o “Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento”, obra que acaba de ser lançada com selo da TextoTerritório.

Ana, não a autora, mas a protagonista do “Colete”, vai estudar autoficção em Paris. Como ela narra suas memórias, ela sabe tudo o que vai acontecer num “futuramente mais –que-perfeito” e  não nos esconde nada. Nós, leitores, precisamos estar atentos para dar conta dessa “viagem” em que a ironia está presente o tempo todo. O humor também, e, por isso, rir em várias passagens acaba sendo imperativo. Quando a personagem conta o que foi estudar em terras francesas, ficamos tranquilos, pois, a partir daí, ficamos sabendo que leremos uma autoficção. No entanto, Ana nos enlouquece. Voltamos à estaca zero: o que temos em mãos? Um diário, um antidiário (Definição que o poeta Franklin Alves Dassie prefere usar), um livro de viagens ou uma autoficção? Temos mesmo que ter um colete salva-vidas bem perto de nós, pois o livro de El-Jaick, magistralmente, tira-nos da zona de conforto.

“’Diário’ em francês é journal. No começo de A náusea, de Sartre, o narrador diz que “Dans un cas seulement il pourrait être intéressant de tenir un journal: ce serait si” e o texto para ali. Eu me pergunto: em que caso poderia ser interessante manter um diário? O diário do narrador de Sartre é o livro. Mas o livro, que é um diário, pode ser também um jornal? Um jornal que conte notícias tão incríveis que, por serem tão incríveis, contenham tudo e que, porque contenham tudo, sejam tudo, de modo que para este livro tudo será possível – até mesmo virar cambalhota no fim?”, indaga-se ela, completando que escreve isso tudo “pensando que, se este meu diário ainda não existe, posso dizer qualquer coisa sobre ele.”

Ana Paula El-Jaick é fluminense de Nova Friburgo. Também é autora de “Faz duas semanas que meu amor” (Summus, 2008) e “Tríptico” (Edições Macondo, 2017). Os títulos estão disponíveis nos sites das respectivas editoras. “Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento” pode ser comprado através do link http://pag.ae/blzSDQ3.

Marisa Loures –  Por que o título “Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento”?

Ana Paula – Pode não parecer, mas queria um título esperançoso. Algo como: se você estiver pensando alguma coisa do tipo “tanto faz se o avião em que eu estiver cair ou não”, o título diria “vale a pena vestir o colete”. Além disso, como a protagonista do livro está em viagem (e em viagens dentro da viagem, como uma boneca russa de viagens), achei que podia cair bem uma brincadeira com esse aviso de segurança a que o passageiro mal dá atenção. Finalmente, queria um título que tivesse alguma marcação enunciativa que marcasse o aqui e agora – dessa maneira, esta advertência para algum perigo sempre eminente, esse lembrete de um colete ali sempre presente, também embaixo da poltrona em que o leitor está sentado lendo, me pareceu uma boa solução.

– Na orelha do livro, Franklin Alves Dassie diz que “se todos usassem a ironia como forma de comunicação, haveria um colapso linguístico, daí talvez o uso do colete salva-vidas, que está embaixo do assento”. O assento está no livro de viagem, ou seja, o livro é a viagem. Pode-se tirar daí que o livro é a solução para um possível colapso?

– Gosto muito da orelha do Franklin, amigo desde os tempos da graduação em Letras na UFF, agora reconhecidamente um grande poeta, principalmente depois que seu livro “Grandes mamíferos” ficou entre os finalistas do prêmio Oceanos 2017. Como você disse, o livro é a viagem – por isso, de propósito, coloquei uma epígrafe de “Galáxias”, do Haroldo de Campos, em que se lê: “Um livro de viagem onde a viagem seja o livro”. Dessa forma, o livro pode ser visto como uma espécie de metatexto: a viagem narrada é a própria viagem da leitura do livro. Contudo, não tenho nenhuma pretensão de que o livro seja algo a que se agarrar em caso de incêndio – ele é bastante menos pretensioso que isso.

“Tentei fazer do livro uma ironia com esse rótulo autoficção, que esteve muito em voga há bem pouco tempo. Porém, é claro que usar a linguagem é estar sempre no risco do mal entendido, de modo que não tenho controle sobre a ironia ser percebida – pode ser que o leitor leve a autoficção a sério. Vejo o “Colete” como um livro bem-humorado – em que, sim, busco “borrar os limites entre real e ficção”, como disse o Franklin, mais como uma estratégia irônica do que como expressão de uma tese.”

– Dassie também diz que você busca “borrar os limites ente real e ficção, o que a crítica chama de autoficção.” Mas ele completa dizendo que gosta de pensar no seu livro como um antidiário. E na história você brinca com essa questão ao simular uma possível entrevista com a Ana escritora: “ ‘Há um colete salva-vidas…’ é um desses livros que estão na moda agora, ‘autoficção’?. Perguntamos à autora se esse livro será um falso amigo tout court. Ana nos sorriu em resposta – e se perguntou: ‘Mas há alguma diferença entre…?’”.  Sua intenção é, justamente, desfazer esse limite?

– Tentei fazer do livro uma ironia com esse rótulo autoficção, que esteve muito em voga há bem pouco tempo. Porém, é claro que usar a linguagem é estar sempre no risco do mal entendido, de modo que não tenho controle sobre a ironia ser percebida – pode ser que o leitor leve a autoficção a sério. Vejo o “Colete” como um livro bem-humorado – em que, sim, busco “borrar os limites entre real e ficção”, como disse o Franklin, mais como uma estratégia irônica do que como expressão de uma tese. Assim, o livro joga com situações verossímeis, mas irreais – acho que também neste ponto o Franklin é bastante feliz quando fala em “antidiário”: o livro não é um diário de viagem, um relato de viagem. Como você lembrou, logo no início do livro, enceno uma entrevista como um estratagema para “escancarar” o máximo possível que o lance ali é fazer autoficção ironizando a autoficção, entendendo-a como uma “moda” na literatura recente, uma moda como tantas outras. A resposta da Ana é em forma de pergunta: se há diferença entre “ficção” e “autoficção” – afinal, sempre que se escreve, não se está em todos os personagens, em maior ou menor grau? Então, sim, você está certa: minha ideia é borrar esses limites – ou melhor, é reconhecer sua ausência mesmo quando se fala em uma obra como autoficção. De novo, é uma tentativa de ironizar esse “nicho” que chegou a parecer certo imperativo para o sucesso, esse “modo de fazer” que deveria ser seguido caso se quisesse ver seu livro publicado – e, pior, um “método” com ares de “grande novidade”, mas que não parece tão novo se pensarmos, por exemplo, nos diálogos socráticos de Platão, em que este dirigia Sócrates em cena como um personagem.

“Vejo a escrita como um gesto. Neste caso, quem faz o gesto sou eu – mas quem vai estudar autoficção em Paris é a personagem Ana, não eu. “Qual o lugar do autor” é uma pergunta “das grandes”. Acho que meu lugar como autora do “Colete” é o de dar forma escrita a uma história com a preocupação estética justamente de como dar essa forma.”

– Levando-se em conta que o livro apresenta traços da sua vida e, por isso, poderia ser classificado como autoficção (inclusive a Ana personagem vai estudar autoficção em Paris), qual o lugar do autor nesse tipo de literatura que você acaba de entregar ao leitor?

– Vejo a escrita como um gesto. Neste caso, quem faz o gesto sou eu – mas quem vai estudar autoficção em Paris é a personagem Ana, não eu. “Qual o lugar do autor” é uma pergunta “das grandes”. Acho que meu lugar como autora do “Colete” é o de dar forma escrita a uma história com a preocupação estética justamente de como dar essa forma.

– A personagem Ana fala várias vezes de um “futuramente-mais-que-perfeito”. Ela narra com uma convicção de quem tudo sabe e que determinada coisa vai acontecer no futuro. Qual a importância dessa brincadeira com os tempos verbais para o resultado do seu livro?

– Tem um jogo com o tempo verbal, com o pretérito mais-que-perfeito, e com alguma coisa que seria “mais que perfeita”. Essa brincadeira é possível com a encenação de uma autoficção, com uma personagem que narra no gênero diário: como este é um diário “de memórias”, Ana pode tudo saber, pois ela olha para o passado dela, que vem a ser o futuro da personagem. Há também um gosto peculiar meu como leitora: sempre atentei para as profecias, os presságios, os oráculos. Sempre gostei de sinais que o autor vai semeando em sua narrativa para, mais adiante, colher maduro. Novamente, espero que essa resposta não esteja soando ambiciosa – tom que, de longe, é o meu desejado. Enfim, é menos: mais um prazer de jogar com o tempo.

– Em que contexto esse novo livro nasceu?  Ele reflete seu momento de escrita?

– Esse “novo livro”, na verdade, está quase completando seu aniversário de dez anos. Em uma conversa com Soraia (Bini Cury), agora querida amiga, na época editora do meu primeiro livro de ficção (“Faz duas semanas que meu amor”), quando lhe disse que estava estudando em Paris (mas não autoficção…), ela me perguntou por que eu não escrevia um livro ambientado lá. Se você me pergunta se o contexto reflete meu momento atual de escrita, tendo a responder que não – até porque, como eu disse, o “Colete” foi escrito há uns oito, nove anos.

– Quando escreve, você pensa e planeja que tipo de reflexões e diálogos quer criar e possibilitar ao leitor?

 – Sim, sobretudo penso antes de escrever. Quer dizer, vou tendo ideias de situações e diálogos e vou anotando em minha caderneta. Entretanto, é claro que a escrita e a reescrita são os momentos em que a escritura de fato acontece. Ao mesmo tempo, como já disse, tenho consciência de que não tenho controle sobre o que o vou “possibilitar ao leitor”. Até tento guiá-lo ao meu bel prazer – mas é claro que isso é totalmente ilusório.

– Seu livro anterior “Faz duas semanas que meu amor” valoriza a temática da rotina lésbica. Em algum momento de “Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento”, esse tema volta a estar no centro da narrativa?

– Você tem razão em dizer que o “Faz duas semanas que meu amor” valoriza a temática lésbica. Tanto assim que, quando acabei de escrevê-lo, sabia que, se quisesse vê-lo publicado, teria de procurar uma editora gay – e a GLS, selo da Summus, tinha sido inaugurada há pouco tempo na época. Tinha certeza de que nenhuma editora que não tivesse esse “nicho” mercadológico se interessaria pelo livro – apesar de que, por mais contraditório que isso possa parecer, acho o rótulo “literatura gay” muito chato. Então, tenho esperança de que, por mais que a protagonista Ana seja apaixonada no “Há um colete…” pela Lindona, o leitor não veja o lesbianismo como o centro dessa narrativa. Bom, confesso aqui que minha tontice é tamanha que só este ano, aos 42, fui me dar conta de que o mundo é heterossexual… Mas espero que o leitor não se “choque” com o amor de Ana pela Lindona.

 – De que maneira você coloca sua literatura na rua?

– Até o momento, livros “literários” que publiquei foram só três. O primeiro, “Faz duas semanas que meu amor”, como eu disse antes, uma vez que eu tinha certeza de que nenhuma editora, por menor que fosse, se interessaria por ele se não visasse um mercado GLS, foi logo enviado para a então recém-inaugurada GLS. Demorou bastante tempo para eu receber uma resposta, até que um dia a Soraia me ligou perguntando se eu ainda tinha interesse em publicar o livro – e aí está ele. O segundo é uma plaquetezinha, o “Tríptico”. A Anelise (Freitas), das Edições Macondo, uma bela noite me perguntou se eu não tinha algum texto na gaveta. Na ocasião, eu tinha acabado de deixar o “Colete” com o Alexandre (Faria, da Texto Território e meu colega na UFJF). Logo depois li a plaquete da Laura Assis “Todo poema é a história de uma perda”,publicada pela Macondo. É  uma plaquete linda, com três poemas. Ela me fez lembrar desse texto que tinha escrito – e que, sim, estava na gaveta. Mandei para a Anelise, a Fernanda (Vivacqua) e o Otávio (Campos), editores da Macondo, e eles concordaram em publicar. Acho que ficou um trabalho muito bonito, intercalando textos meus com desenhos da minha amiga Nikoleta Kerinska. Por fim, esse “Colete” sai agora pela Texto Território. Pensando agora é que me dou conta de que os três textos já estavam escritos há tempos quando, finalmente, foram postos “na rua”, como você disse. Pelo menos até agora não tive tanta pressa de publicar – peço antes que alguns amigos leiam, etc. Esse “Colete” ainda teve o fato de que eu o enviei para alguns concursos com a esperança de publicá-lo por essa via. Acabou que ele foi um dos finalistas do Prêmio Rio de Literatura 2015, na categoria “Novo autor fluminense” –  o que me motivou a, de fato, publicá-lo. Nisso o Alexandre soube do livro e tal, e me perguntou se eu já tinha uma editora. Eu não tinha…

há um colete

 

“Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento”

Autora: Ana Paula El-Jaick

Editora: Texto Território

 

 

 

Trecho de “Há um colete salva-vidas embaixo do seu assento”

“A História começa com a escrita”, a amiga de Olavo me dirá em um futuramentemais–que-perfeito.
Mas esta história começa em algum lugar entre: entre o
aparecimento da escrita e o futuramente. Esta história começa no meio do caminho. Esta
história começa com despedidas. Ela começa com alguém que parte, e esse alguém sou eu.

Estou num avião da Air France, indo para Paris no dia três de setembro, mas só
chegarei lá amanhã. Eu, a protagonista desta história, parto porque preciso estudar em
Paris –, mas Alguém me dirá, num futuramente próximo, que terei partido porque “A
natureza humana é nômade”.

Eu, Ana, deixei o Rio de Janeiro para trás com Paris pela frente. A diferença
entre um e outro? Cinco horas. Por exemplo: quando é meio-dia no Rio, são cinco horas
em Paris. Também tem a diferença de que, de agora em diante, com os amigos será na
base do “aqui de longe”, “tudo de bom por aí”.

Algumas peculiaridades do longe: quando se está longe, melhor nem chegar
perto de fotografias. Ana, eu, eu sentirei saudades dela, ela, a Lindona. 

Algumas particularidades do lugar: você chega a outro lugar, mas o lugar mesmo
não chega a lugar nenhum. O lugar mesmo fica. Outra particularidade do lugar: só eu,
Ana, ocupo este lugar no espaço x, em que x pode ser um lugar como esta cadeira
desconfortável do avião da Air France – ou Paris. 

Neste momento da história, acho que, fora desta cadeira desconfortável do avião
da Air France, o mundo é cheio de espaços a serem ocupados.”

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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