Sérgio Soares: ‘Escrevo com a pena do escrevinhador, mas com o olhar do professor’

No Sala de Leitura deste semana, Marisa Loures conversa com Sérgio Soares

Por Marisa Loures

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No livro de contos “Dias possíveis”, o professor e “escrevinhador” Sérgio Soares lançou mão do drama, da ironia, do humor e do suspense a fim de contar uma história para cada mês do ano (Foto: Divulgação)

Uma mulher se envolve, ainda adolescente, com um rapaz mais velho. O que, para ela, poderia ser um conto de fadas, revela-se como uma história de abusos e agressões, a partir da qual pode-se discutir a violência contra a mulher e o racismo. A vida segue. A protagonista é trancafiada em uma penitenciária. E é dentro dos muros da prisão que, ironicamente, ela comemora sua independência pessoal. Datada de 7 de setembro, uma carta é a portadora da notícia de sua liberdade.

“Setembro” é o título desse conto que acabei de apresentar, e ele integra o livro “Dias possíveis” (Caravana Grupo Editorial), obra de estreia na literatura do juiz-forano Sérgio Soares. “A racionalidade do livro acabou no planejamento inicial. Os contos não foram escritos na ordem cronológica do calendário, e o que surgiu primeiro em cada um deles foram as personagens. Já o conflito que marcou cada história veio no fluxo, como se fosse a personagem quem estivesse me contando sua verdade. Só fui me dar conta da complexidade que elas tomaram já com os 12 contos escritos e, confesso, também me surpreendi, porque em momento algum previ ou desejei fazer um texto engajado, com bandeiras sociais”, conta o autor.

Professor de Língua Portuguesa e Literatura, Sérgio também se apresenta como um homem da urbis e um escrevinhador de textículos. “Hoje me entendo como um ser múltiplo”, diz ele, inspirado em Fernando Pessoa e seus heterônimos. E, por falar em inspirações, na escrita dos contos de “Dias possíveis”, ele confessa ter sido influenciado por Machado de Assis, “pela destreza com a diegese e crítica social”, Murilo Rubião, “com seu realismo fantástico”, e Nelson Rodrigues.

Marisa Loures – Como surgiu a ideia de criar um livro que explora diferentes temas para cada mês do ano, mas fugindo das representações tradicionais que os envolvem?

Sérgio Soares – Somente para contextualizar, esse livro surgiu durante o olho do furacão de uma grande crise pessoal. Então, um dia, acordei com a ideia e o nome do livro na cabeça. Diferentemente de tudo que já havia escrito, esse foi planificado. Queria fazer um livro com 12 contos, um para cada mês do ano, pegando o mote de datas ou situações típicas. Contudo, queria uma narrativa, e uma cara diferentes para cada uma das personagens. Assim surgiu Geralda, Ego, Padre Pio e os demais.

Sobre este conto “Setembro”, a personagem principal experimenta um ciclo de abusos e agressões que culmina em uma celebração pessoal de “independência”, mesmo dentro de uma prisão. Como você trabalhou a ideia de liberdade pessoal nesse contexto, e o que essa reviravolta final — em que a personagem encontra sua “independência” enquanto permanece fisicamente presa — revela sobre a complexidade da violência de gênero e da reconstrução de identidade feminina?

Acho que a grande mensagem contida em “Setembro” está no limite da dor que cada mulher-mãe é capaz de suportar, por amor às suas crias. Sentir-se livre, enquanto presa, é a grande metáfora dessa narrativa, por ela ter conseguido garantir a segurança e a liberdade dos filhos, em troca da sua. Por outro lado, na condição de professor, o conto serve de alerta para tantas jovens, com as quais cruzei em sala de aula, que trocaram uma vida segura pelo descaminho dos relacionamentos tóxicos com homens misóginos, machistas e agressivos.

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“Dias possíveis”, de Sérgio Soares (Foto: Divulgação)

Em “Dias possíveis”, cada uma das doze histórias combina elementos de drama, suspense, ironia e humor, compondo uma narrativa que expõe verdades duras e imprescindíveis. Dentre todos os contos, qual foi o mais desafiador de escrever e o que tornou esse processo especialmente difícil para você?

Difícil eu não diria, mas desafiador certamente foi “Fevereiro”. Primeiro porque sua história já existia em outro conto, só que ela terminava com a saída da escola e a mudança para o Norte do país. Inclusive, esse foi um dos primeiros que escrevi. Na verdade, o segundo. E, quando surgiu a ideia do “amor de carnaval”, a personagem não poderia ser outra que não Geralda. Daí para a frente foi tudo um risco. Queria uma personagem forte, inteligente, marcada por tragédias pessoais, mas, ao mesmo tempo, que apresentasse fragilidade. O risco de isso cair no clichê era muito grande, risco maior eram as pessoas não entenderem sua “singularidade” – ser (falso) intersexo – uma condição que, pouco depois, fui perceber que nem mesmo os defensores dos direitos LGBTQIA+ sabiam definir com exatidão. No final, a tragédia não poderia ser outra, pois seria por demais piegas acreditar que uma relação baseada apenas na paixão suportaria uma verdade tão incomum.

Qual é a importância de abordar as “verdades duras” que permeiam os contos de “Dias Possíveis” e o que você espera que os leitores levem dessas realidades complexas e, muitas vezes, incômodas?

Nunca desejei parecer amargo, mal resolvido. Essa narrativa não me cabe. Contudo, não consigo escrever contos de fadas. Talvez porque a experiência, os anos passados, tenham deixado marcas nem sempre doces em minha pele. O certo é que minha escrita acaba sendo um retrato daquilo que percebo em torno. Sou naturalmente muito observador, e acho que isso me impede de deixar de falar essas verdades. O último microcauso que escrevi no blog se chama justamente “O escritor”, e ele termina com a pergunta impetuosa da jornalista ao personagem principal: “-Me perdoe a sinceridade, Arquimedes, mas você só vê o lado sombrio da vida? Você nunca foi feliz? – Claro que fui, e sou feliz, minha cara. Felicíssimo, aliás, sempre que sou o vilão da história.”

Em seu perfil na rede social, você se descreve como “homem de Letras e escrevinhador de textículos que desenha as palavras.” De que forma essa autodefinição reflete a sua abordagem com as palavras e influencia o estilo dos seus textos?

Sou um professor. Um professor de literatura e produção textual que conta histórias. Escritor é uma láurea, uma honraria que ainda não me cabe. Escrevo com a pena do escrevinhador, mas com o olhar do professor que se preocupa não só com a métrica, nem tampouco com a semântica ou morfologia do texto, mas em primeiro lugar com a percepção, com a fruição do texto pelo leitor.

Você mantém o blog Articulância e publica nas redes sociais. Qual o papel dessas plataformas para você como escritor e professor?

Articulância nunca cumpriu a função de blog. Surgiu como um caderno de textos terapeutizados (recomendação médica), que nasceram na tela de um computador (já que papel e a caneta há muito não me acompanham), e hoje é meu grande repositório de ideias em constante ebulição e renovação.

Com o lançamento de “Dias Possíveis”, os leitores estão conhecendo um pouco mais o seu estilo e as temáticas que você aborda. Você já tem planos ou inspirações para uma nova obra? O que podemos esperar dos seus próximos projetos de escrita?

Claro, sou muito inquieto. Ainda na escrita de “Dias possíveis”, outras histórias foram surgindo, além de já existirem outros escritos. Mas, de fato, existem dois projetos: um em curso, que se chamará “Microcausos da vida & outras tramóias”; e o outro é um texto longo, meu primeiro romance, que já está no forno. O que se pode esperar desses projetos? Tudo, menos o óbvio.

Marisa Loures

Marisa Loures

Marisa Loures é professora de Português e Literatura, jornalista e atriz. No entrelaço da sala de aula, da redação de jornal e do palco, descobriu o laço de conciliação entre suas carreiras: o amor pela palavra.

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